Ano Novo e são 5h da manhã quando começo a rascunhar esta coisa numa folha velha. Bom sinal. O mundo muda continuamente, celebramos as suas voltas completas como eventos instantaneamente transformadores… mas é preciso mais do que isso para mexer com as idiossincrasias do meu ritmo circadiano.
O pobre ano que começa mal teve tempo para se espreguiçar e sair da cama mas a minha euforia pré-reveillon por causa do começo da vacinação esfumou-se como fogo de artifício daquela noite, com os primeiros dias de regresso à atividade normal. Com o regresso aos transportes públicos superlotados, à convivência com os seres humanos que usam a máscara no queixo e com a pré-ruptura evidente de metade dos hospitais nacionais, flagrantemente desacompanhada da legítima preocupação institucional que ela exige. Não argumento que não a haja. Mas aquilo que transpira dos meios de comunicação tradicionais - porto de abrigo relativamente seguro da informação fidedigna em tempos de redes sociais e de pessoas que compreenderam que a mentira digital é mais rentável ou que assumiram que o direito de expressar a sua opinião lhe aufere correlação com os factos ou verniz de autoridade na matéria* - é que está tudo muito tranquilo, palavra nacional preferida para eufemizar o descontrolo desde a era Paulo Bento. Também a publicidade institucional não foi atualizada desde o período do Verão, em que a descida do número de casos tornou possível um certo desconfinamento, apelando portanto à retoma da vida normal como se tudo já tivesse acabado. A impressão geral é que desde que temos vacina - relembre-se, a conta-gotas - cabe ao governo proteger-nos e a nossa responsabilidade na matéria terminou. E as consequências avançam rapidamente na direção de todos nós, de mão dada com a amarga sensação de que ainda mal começámos. Outra vez.
Ainda assim, sendo esta a primeira do ano, há um rastilho de memória boa depois de um Natal abençoado onde procurei tomar o devido tempo e espaço para saborear o ritual de pendurar cada bolinha da árvore. Não sei como é que há quem prefira delegar esta tarefa pagando centenas de euros para chegar a casa com tudo pronto e bonitinho. Teriam de me pagar a mim para abdicar até de um único dos cogumelos de plástico vermelhos que penduro como se fossem jóias na base da árvore, quanto mais da glória inerente a fazer da organização de um evento, outro evento em si.
Embalada, assim, em bolas coloridas e rios de chocolate quente, flutuei pelo calendário como num sonho e quando chegou o pôr do sol no dia 31, tomei um banho gigante, estreei o meu pijama cor de rosa novo e pus o meu melhor batom vermelho. Jantámos tapas, bebemos sangria, assistimos às tradicionais campanadas em direto da, pela primeira vez deserta, Plaza del Sol madrilena e deixámos a madrugada morrer entre fotografias de compatriotas vestidos com cobertores. Esta frase tem um duplo sentido, além da quarentena. Todos os anos, a apresentadora da estação concorrente tenta bater o record da menor quantidade de tecido utilizada num vestido (podem ver as peças anteriores AQUI). O DESTE ANO, incluía uma capa definida pela equipa que a fez como “um edredon desconstruído” em alusão à nossa entrega mais ou menos forçada ao conforto da nossa casa durante este ano. A nação levou a coisa à SÉRIO.
Por fim, a emissão da estação pública terminou dedicada a Emperador, a aldeia mais pequena de Espanha, que nem por isso deixa de escolher um nome épico. 11 ruas mas numa delas há um bar e consta que têm um vereador responsável pelas festas. Todo um reforço positivo à palavra que os portugueses acabaram de escolher, em sinal de fidelidade estóica ao que sempre foram, como palavra do ano: saudade. Que as matemos todas antes desta volta ao sol terminar. Feliz 2021!
PROCURA-SE CAFÉ
Esta é pessoal. Pessoalíssima. Um dos cafés para onde costumava ir trabalhar está arruinado. Arruinaram-mo da pior maneira possível. Estava eu toda contente a pagar a conta da última sessão literária quando a empregada decidiu perguntar-me se eu era casada. Devia ter dito que sim porque o que se seguiu foi um insinuante “É que o meu gerente está interessado em você”. Fui. Adeus, querida tarte de maçã. Adeus, tomada sempre disponível, cuja ausência o meu PC irá estranhar nas suas horas de menor carga. Foi bom enquanto durou. Mas entre a ausência de gónadas que requereu presença de intermediária e o atropelo de uns 2036 códigos sociais que esta antiquada pessoa ainda respeita, urge irremediávelmente mudar de sede. Estou mesmo à procura de recomendações? Não, queria só queixar-me. Bolas que aquela tomada dava jeito.
MONUMENTO À RECONCILIAÇÃO
Se as feridas da guerra colonial ainda sangram, de vez em quando, as da guerra civil que aconteceu do outro lado da fronteira parecem, por vezes, nunca ter estancado. Na sequência da publicação do ÚLTIMO LIVRO do meu escritor preferido, foi promovida a criação de um album digital, criado a partir de contribuições dos leitores, com inúmeras fotografias e testemunhos, histórias reais dos nossos avós e bisavós que lutaram em ambas as fações sem qualquer distinção entre elas. Uma demonstração de Humanidade e um apelo à união que não vão deixar de ser necessários tão cedo.
QUE O MEU NOME NÃO SE APAGUE DA HISTÓRIA
Por falar em guerra civil, esta foi a última frase de uma miúda de 19 anos, fusilada pelo regime, num daqueles episódios da história que eu preferia não conhecer. Lembrei-me dela esta semana, quando dei de caras com a imagem abaixo.
Como já suspeitava, quando perdemos tudo, resta-nos a verdade. A nossa verdade, a nossa história. Porque por muito que nos contem que é escrita pelos vencedores, ninguém pode negar que os vencidos escreviam bem. A imagem é de uma masmorra do século XVIII que vai começar a ser restaurada agora, de forma a preservar os 30 metros quadrados de gravuras e desenhos feitos por um prisioneiro da época que, à falta de papel - e de ter aprendido a escrever, provavelmente - achou que a sua biografia ficava era bem desenhada nas paredes. Assaltos a carruagens, fugas às autoridades e toda a classe de peripécias dignas de um romance de época. Quem sabe como iremos contar esta a quem vier a seguir. Uma coisa é certa: o próximo que se lembrar de fazer um filme sobre uma ameaça de pandemia (e já houve uns quantos) vai pensar duas vezes.
À PROCURA DO SOL
Nos últimos dias de 2020, ainda me cruzei com a história da letra de Here Comes the Sun, a minha canção pós-banco de excelência. Aparentemente, no dia em que escreveu aquela preciosidade, George Harrison tomou a sabia decisão de deixar plantados os executivos da sua editora trocando-os por uma visita a Eric Clapton. Foi no jardim de casa deste que a preciosidade que me acompanha até casa mais ou menos uma vez por semana nasceu. Com um espírito muito parecido, agora que penso nisso. “Já passou. Está tudo bem.” Oxalá, quando menos esperarmos, demos por nós a cantar juntos outra vez.
*Acerca disto, mais uma reclamação de servidora. Entrar numa livraria, escorregar, como sempre, para a secção de livros técnicos de Medicina e encontrar, como cabeça de cartaz, um volume chamado “Liberte o gigante que há em si”. Valha-nos Deus. Avanço para as revistas. A Men’s Health olha para mim, desafiante e pergunta, inquietante “Porque traímos?” e o pensamento “Porque sois uns filhos da mãe.” faz o percurso de saída da minha cabeça, torna-se voz e percorre aquele espaço de lotação máxima estritamente controlada… felizmente. Acho que preciso de uma livraria nova.
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