Sempre me senti em casa quando estou a andar de um lado para o outro. Compreendo perfeitamente se, neste ponto do meu uso da palavra, surgirem dúvidas quanto à integridade do meu estado mental. Aproveito para as dissipar de imediato. Acho eu. Nunca se sabe.
Não deixando de reiterar a minha paradoxal convicção, compreendo a loucura do que digo. Entende-se o sentimento de casa como estando inabalavelmente associado a um lugar fixo, estável e de conforto familiar que uma deslocação não poderia, à partida e por definição, oferecer. Acontece que, sendo fiel à verdade, muito do meu tempo é consumido em deslocações físicas. Pode o leitor descuidar porque a viagem espiritual fica, de momento, adiada… Muito gostaria eu que tudo fosse produto de wanderlust, aquela palavra que há alguns anos era desconhecida do público geral mas que hoje se imiscuiu por completo nas redes sociais de quem utiliza o seu número de likes como unidade de medida de realização pessoal. Na realidade sempre vivi assim, por motivos pessoais e, mais recentemente, profissionais. De modo que me habituei a permanecer horas, confortavelmente, algures numa via de trânsito, num veículo em movimento.
Por esta razão, a viagem em si, e o estado de espírito em que ela me mergulha torna-se familiar. Um velho conhecido que nos encontra casualmente e que nos vemos obrigados a cumprimentar, mesmo que não queiramos. Passar esse tempo a pensar (é favor fazer o obséquio de ignorar a aliteração), não é, portanto, demasiado surpreendente.
Haverá que reconhecer que o cenário é especialmente propício. A viagem física como estímulo da viagem espiritual (agora sim, cá vamos nós). O contraste violento entre a inquietação do destino e a segurança de quem aprendeu a sentir-se em casa dentro de um autocarro ou avião. Convenhamos que existe um certo risco intelectual que é perigosamente interessante e que decorre de tornar a inquietação trémula do meu miocardiozinho agitado no meu estado basal.
A inquietação, se tornada num hábito, torna-se segurança e a segurança cai na conformidade. No viver da quietude como fonte mesma de ansiedade por atípica e da taquicardia mental como familiar e, ria-se, confortável e previsível. E neste caus, neste oceano, que me mantenho submersa sem nunca deixar de respirar. Sentindo que todo o ar do mundo não chega mas tranquila na minha hipoxia.
Também aqui, como em quase tudo na vida, a medicina acaba por vir em meu auxílio. Não, não me introduzi de forma alguma nos meandros dos consumos farmacológicos. A minha realidade é algo menos divertida. Mas foi-me útil, de uma forma da qual talvez me esteja a aperceber agora, a caracterizar o que sinto. A febre que é o meu pensamento, a hipotermia da minha fragilidade. Os meus ossos de vidro. Ainda que, sendo honesta, nem só na minha disseção emocional me foi a medicina útil. Também deu um nome à minha cura, ou pelo menos, para a minha terapêutica de manutenção. As minhas palavras maiores.
Sempre gostei desse conceito, desde que li, no meu 6º ano, as de Eugénio de Andrade, que até hoje sei de cor: mãe, mar, amor, corpo, rumor. Acho que foi por ler coisas destas que aprendi a sentir-me em casa em qualquer lado. Fui colocando aos bocadinhos pedaços de ser em conceitos destes. A minha sensação de conforto vem de palavras, memórias e lugares mentais muito mais do que de espaços físicos. Vem de coisas parvas e simbólicas como levar toda a família dentro de uma fotografia, de ter na mochila um livro da biblioteca lá de casa, de ter um objetivo com a viagem que estou a fazer.
“Propósito” deve ser uma das minhas palavras. Imagino-a mesmo como uma engrenagem enorme e cheia de roldanas interligadas em contínuo movimento no centro da terra. A mesma que faz com que o meu sítio preferido para trabalhar no Porto seja a estação de S. Bento. Onde quer que eu olhe, através dos meus aleatórios companheiros de viagem, vejo os motores mesmos da sua existência. Regressos a casa no fim do trabalho, exames, encontros, reuniões, transações, vida, rios de vida dançante, rebelde e imparável. Sentir-me uma peça dessa engrenagem é toda a ligação à terra que eu preciso. De facto, sempre preferi aviões.