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Inserir destino


Tenho um interesse mais do que moderado por revistas de moda. Encaradas hoje por mim como uma transição natural entre os tempos em que consumia a Bravo como quem consome oxigénio e a minha vida de pseudoadulta, devo confessar que começar a lê-las nos últimos anos de secundário representou para mim uma completa mudança de estatuto. Ler a Elle separava-me das comuns mortais, das admiradoras do mundano, das devotas do prosaico, das espécies adictas à Super Pop e derivadas. Nada mais revelador da minha maturidade por esses tempos, uma taxonomia social baseada em revistas: diz-me o que lês e dir-te-ei quem és.


Apesar de que o meu método de classificar pessoas mudou desde aquela altura, tenho de confessar que aquilo que leio… nem por isso. Assim que, na semana passada, consultando, como habitualmente, as atualizações das publicações jornalísticas habituais (uma forma muito mais eloquente para eufemizar a verificação frenética semanal que faço às newsletters das revistas do costume), acabei por tomar contacto com uma informação francamente perturbadora.


Encaro, preto no branco, uma entrada de título tenebrosamente promissor, que apregoa do modo mais macabro possível, a “verdadeira história” das escritoras dos horóscopos das revistas juvenis “que não percebem nada de astrologia”. Há tanto de errado nesta frase (e nesta história) que me vejo obrigada a dissecá-la melhor.


O artigo (obviamente que o acto contínuo à leitura do título foi a abertura do mesmo) expõe, como um realismo abrumador (e desolador para todas as novas ou não tão novas e já reformadas leitoras) a ignorância de algumas das profissionais (será este o termo?) que “escrevem”, quais deuses redigindo as leis do universo, o nosso futuro mensalmente quanto à arte dos astros e, com fatal e inegável consequência, quanto aos nossos destinos. É a própria entrevistada que revela ter sido em tempos, fiel leitora daquelas páginas proféticas segundo as quais planificava os seus empreendimentos emocionais e financeiros. Leia-se que os astros encerravam o poder de decidir se aceitávamos sair com o tal rapaz ou se comprávamos roupa ou maquilhagem – nunca qualquer outra coisa.


Leia-se ainda, que a mesma ficou desolada ao ser convidada para este intrincado desafio literário, ao compreender, por fim, que os seus autores prévios eram tão íntimos dos astros como a maioria dos mortais. O que não a impediu de, rapidamente, capitalizar a sua decepção sob a forma de Complexo de Deus (ou de Astrólogo), escrevendo atrocidades para os signos das inimigas (frase que implora por ser transformada em refrão de canção brasileira) e sugestões de extrema subtileza para aqueles dos seus pretendentes (entre as quais se incluem pérolas do eufemismo como “convida-a para sair de uma vez”).


Naturalmente que o desencanto espelhado pela protagonista deste artigo ressoou em mim em duplicado, por ser o dela e o meu, perante estes crimes contra a comunidade de leitores entre as quais, em tempos, me incluíra. Despendi mesmo uma quantidade pouco razoável de tempo a especular quantas das minhas ações passadas deveriam ser imputadas, não a mim, mas ao simples infortúnio de ter nascido sob os mesmos astros que alguma das Némesis das escritoras destes vaticínios.


Apesar disso, recomposta já de tamanha decepção, sóbria na minha dor, vejo-me obrigada a reconhecer friamente, que o conhecimento do meu futuro espelhado pelas autoras, não será demasiado inferior ou tão menos fiável ao que seria patente, a ser escrito por quem se faz conhecer por astrólogo. Mas a recordação reaquecida daquele que foi um pequeno Norte para a minha geração fez-me pensar nos “Nortes” que pautam hoje, às vezes com o mesmo grau de incerteza, a nossa acção no presente. As bússolas que nos guiam.


A vida é um bocadinho como aqueles jogos de Geocatching em que os participantes vão para alguma mata intrincada, munidos de algum tipo de orientação geográfica e procuram as caixinhas que os organizadores (ou os deuses da minha metáfora) deixaram previamente escondidos. Só que na vida real nem todos procuramos as mesmas coisas, nem usamos os mesmos métodos para lá chegar. Alem de que os deuses as escondem bem melhor.


A memória infantil e divertida de um algo menos de cadente Johnny Depp na pele de Capitão Jack Sparrow correndo por entre palmeiras com uma bússola mágica nas mãos arranca-me um sorriso. Como seria mais fácil (e entediante) se todos tivéssemos uma bússola guiando-nos diretamente para aquilo que mais queremos no mundo. Na impossibilidade de pisar o planeta ao estilo dos piratas, vivemos condenados a procurar outras formas de orientação.


Hoje, com referências literárias apenas ligeiramente mais consolidadas do que naquela altura, a revisão mental da minha axiologia (ou coluna vertebral como eu insisto em chamar-lhe) penso noutras coisas. Penso na minha família, penso na minha fé.


E relembro, mais uma vez (porque isto das memórias é tramado), a imagem de uma menina pequena que uma decidiu perguntar à mãe o que era o diabo. A resposta que recebi ressoa dentro de mim da mesma forma que há quase 20 anos atrás: o diabo é a nossa consciência, querida. Duvido que a minha mãe se tivesse apercebido na altura de que me tinha acabado de oferecer a minha primeira bússola, dourada e tudo. A conceção de pedra, enorme, montanhosa e mais ou menos inabalável de que devia evitar a todo o custo ter qualquer arrependimento durante a minha caminhada. Graças a ela, tenho o privilégio de dizer que corri por onde quis e voltei para trás quando me apeteceu. Que não devo a ninguém nem um pedido de desculpas, nem um abraço (o Daniel Oliveira teria grande dificuldade em tornar a minha hipotética entrevista no Alta Definição numa coisa lacrimogénia como convém).


Suponho que haja, como em quase tudo, várias formas de ser.


Acho que as bússolas são a minha nova e particular taxonomia. A presença de espírito necessária para caminhar com dignidade no espaço entre aquilo que se deseja e aquilo que se impõe, por ser correto parece-me critério diferenciador mais do que razoável. Quase tão adequado, quanto revistas de moda.

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