Vivemos sob o jugo de leis universais, ainda que o ignoremos constantemente. Há muito que o ser humano declarou a hegemonia da sua espécie, em virtude da sua capacidade de transformação do meio envolvente. Autoproclamámo-nos o centro funcional do planeta, pese embora vivamos hoje sob ameaça constante mas escondida de sermos ultrapassados pela nossa ação deletéria no ambiente ou pela nossa própria criação tecnológica. Corremos ainda o risco, igualmente perigoso, de voluntariamente, conscientemente, acabarmos por abandonar o patamar em que nos colocámos, cedendo-o a esta criação cujo objetivo inicial era apenas o de tornar a nossa vida um pouco mais simples. Apesar de tudo isto, do domínio absoluto que acreditamos, ingenuamente, que exercemos sobre o que nos rodeia, movemo-nos ainda sob os fios invisíveis que comandam tudo o que conhecemos.
A evolução é um dos meus fios de eleição. Especialmente, porque é aquele que mais erradamente pensamos ter rompido. Dia após dia, onde quer que olhe, vejo provas de que os seres humanos mantêm a procura, inconsciente ou não de superar os outros muito além do que é a competitividade interpessoal saudável e desportiva. Movemo-nos, ainda e surpreendentemente, procurando a aprovação do outro de forma não demasiado diferente do que todas as outras espécies. Procuramos ser, ou parecer, os mais aptos, tal como o faziam os seres humanos pré-históricos, as tartarugas darwinianas ou os gorilas de Jane Goodall.
Acontece que a aptidão contemporânea tem métricas muito próprias. Vivemos hoje de uma maneira que, contrariamente ao que pensamos, não nos proporciona níveis particularmente elevados de bem-estar ou satisfação pessoal. Mais exatamente assegura-nos um estado de não-privação de bens essenciais. A envolvência do mundo virtual absorveu-nos de forma tão voraz que nos sentimos mais confortáveis dentro dele do que dentro do mundo que habitamos há milénios. O acesso imediato a pessoas com os mesmos interesses bem como a possibilidade de edificar toda uma existência desenhada à medida, acabou por tornar mais simples partilhar detalhes íntimos com um estranho do que dizer “olá” a um conhecido com que nos cruzemos todos os dias no trabalho.
A interação real, simples e autêntica com outros seres humanos, começou a tornar-se para nós, lentamente, como algo estranho e até menos natural, do que partilhar uma fotografia pessoal com centenas de pessoas. Mergulhados num oceano de aparente perfeição, de vidas construídas em código binário, tornámo-nos mais e mais inseguros. Daí que a necessidade de nos destacarmos, no sentido evolutivo que recuperei no início, esteja hoje tão presente como sempre, desta vez sob a forma de likes, partilhas e comentários. A criação revolucionária que conectaria a humanidade para sempre torna-se num substrato fértil para o renascimento da selva em que os nossos antepassados procuravam sobreviver.
Mas melhor também já não é suficiente para o ser humano de cronologia cada vez mais preenchida e coração cada vez mais vazio. Hoje, chamar a atenção requer ainda, e sobretudo, ser diferente. Mas a diferença, como sabemos tão bem, não se procura. Brota de cada ser humano por lhe ser inerente e, por isso, espontânea e orgânica. O que vemos hoje são dezenas, centenas de pessoas verdadeiramente diferentes que, movidas pela necessidade de conformação com tudo o que gere aprovação massiva, acabam por cair na mesma estética artificial e plástica. Uma colagem que em vez de diferenciadora acaba por conformar os indivíduos a um mesmo padrão - os mesmos conteúdos que originam as mesmas ondas pulsáteis de aprovação que, como qualquer droga, deixam os seus alvos sedentos por mais, num ciclo distanciador do tecido social natural ao qual todos pertencemos, como peças únicas.
A autenticidade nasce de dentro do ser e é permanentemente renovada e transformada pela autenticidade que irradia do mundo exterior e dos outros. A aspiração à diferença como forma de impressionar não só perverte o termo como standardiza os seres humanos tornando-os cópias em série. Prosaicas. Vulgares. Perde-se o verdadeiro potencial da criatividade humana. Perdemos todos.
A criatividade, forma mais autêntica de se ser humano, expressa-se sem esperar aprovações. Se o fizesse, é possível que a humanidade nunca tivesse conhecido algumas das suas maiores obras de arte. E é por essa razão que urge, agora mais do que nunca, dar um passo atrás. Involuir. Um passo atrás nesta corrente evolutiva, aparentemente vantajosa mas degradante na sua orgânica. Um passo atrás… de costas voltadas. O único que hoje nos permite levantar os olhos do ecrã e dirigi-los ao mundo, limpos e cristalinos. A partir daqui talvez possamos, juntos, voltar a tentar olhar em frente.