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Estrada nº 4


“Nada de bom acontece depois das 2h da manhã.” A frase lendária da minha série preferida ecoa nos meus ouvidos ao sair de mais uma daquelas festas a que vamos mais por arrasto da companhia do que por impulso incontrolável de nos introduzirmos numa discoteca. Sejamos honestos… nós, os seres vivos que frequentam esses espaços com a única e genuína intenção de dançar, somos uma espécie mais ameaçada que o lince ibérico. O que acaba por fazer com que eu não sinta particular interesse em entrar num espaço sobrelotado de expetativas, frustrações e fumo de cigarro, cujo odor, passadas algumas horas, é praticamente indistinguível daquele do metro de Lisboa em hora de ponta.


Digo que sim, apesar de tudo, às suspeitas habituais que lá me enviam o link do evento pelo Facebook. Parece ridículo que seja eu a dizê-lo, mas luto atrozmente com a tentação de atirar uma justificação improvisada pelo telemóvel e atirar-me a mim – ato contínuo – diretamente para a cama. Venço-a a duras penas e visto-me contrariada. Mas divirto-me, claro que me divirto. Quem faz os sítios são as pessoas e as minhas não costumam dar hipótese. Apesar do espacinho minúsculo com lotação para 80 pessoas em que se acomodam cerca de 200 (de novo, aposto que toda esta gente reclama da sobrelotação do metro mas paga igualmente por repetir a experiência, desta vez, em versão noturna). Apesar do meu plano original de dançar se ter convertido, uma vez mais, numa daquelas tentativas de conseguir aproveitar a música sem me roçar acidentalmente em 8 pessoas diferentes por minuto. Tenho plena noção de que a minha expectativa inicial de coreografia se converteu numa daquelas sequências de movimentos do típico assaltante cinematográfico que tem de contornar aqueles lasers todos para chegar ao diamante gigante. Com a agravante de que os meus lasers são pessoas bêbadas e não há diamante no final. Resumindo, a música começa a decair, grande parte do público já está decadente e o meu encéfalo hipercinético já pôs a noite para trás das costas antes dos meus pés começarem sequer a acusar que estão há várias horas suspensos por pauzinhos de 12 cm de altura.


São 3h45 quando saio do buraco negro para onde fui voluntariamente sequestrada. Faço-o de forma ligeiramente mais composta (espero eu) do que a maioria dos meus companheiros de jornada. Igualmente surda, isso sem dúvida. Acabo por chegar ao meu carro exausta mas preenchida de antecipação por aquele que é, sem dúvida, o momento mais esperado da noite. E a prova de que Ted Mosby estava errado. Está prestes a acontecer uma coisa boa e são exatamente…

4h00 da madrugada. A minha hora mágica.


Sempre tive um fascínio magnético por estes 60 minutos. Intuo porquê. Durante a minha infância (em que as diretas inerentes à vida de universitária ainda eram uma miragem dos filmes de fim de semana) era a minha hora impossível. A hora do dia em que nunca, mas nunca estava acordada. A barreira do recolher obrigatório jamais ultrapassaria as 3h30 nem tão pouco as viagens de férias requeriam que nos levantássemos antes das 5h. Durante muito tempo, aqueles 60 minutos eram para mim um buraco negro de mistério e expetativa. Na minha cabeça de pequenina, esta era a hora em que as princesas dos sapatos bonitos cobravam vida dos meus livros de encantar e escapavam dos quartos às escondidas para irem dançar. Todo um espaço de tempo a que eu teria acesso quando crescesse. Ao longo dos anos, e das noites sem dormir por boas e más razões, preservou a sua mística infantil. Tal vez por isso, tenho a irritante regra de nunca permanecer na mesma festa para além das 3h59. Nem continuar a estudar, a reunir ou a ver um filme. O reset que imponho a mim mesma é um convite à renovação. Para ser menos poética e mais prosaica, digamos que resgato a chave do fundo da mala, carrego no botão e entro no carro.


O motor cumprimenta-me familiarmente¨, meio como quem reclama da hora. Passadas as ruazinhas minúsculas de Lisboa, entrada já na estrada deserta que durante o dia é uma das artérias mais ocluídas do país, dou início ao ritual do costume. Subo o volume do rádio, abro a capota, baixo os vidros das janelas. E acelero.


Gostava de dizer que não penso em nada. Mas seria mentira. Penso em tudo. Nos 15 minutos que demoro a regressar a casa, cabem horas, dias de frases, preocupações e sentimentos. Penso no que fiz nesse dia, nessa noite. No que devia ter dito e no que deixei para dizer. No medo que tenho de que todas as noites e todos os dias se possam tornar iguais. E no que vou fazer no dia seguinte para que isso não aconteça. De 6 horas de sono e quase 18 de trabalho, estudo, problemas meus e dos outros, e um sem fim de provas de que este mundo é um lugar enorme, minúsculo, injusto e maravilhoso, consigo resgatar 15 minutos para me sentir como o vento. Livre e infinita. E com um milhão de estradas para percorrer nas 24h que se seguem. A próxima conduz diretamente à minha cama.

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