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It's raining men

  • thenutsbook
  • 28 de mar. de 2018
  • 5 min de leitura


Devo confessar uma certa ambiguidade em relação ao épico hit das The Weather Girls. Em primeiro lugar, é inegável que estamos perante uma das formulações musicais mais dançáveis da história, dignas de todo um espasmo convulsivo numa qualquer pista de dança onde sejamos, de preferência, totalmente anónimos. Depois há o lado malcomportado da coisa. Numa altura em que a liberdade moral contrasta com o enclausuramento mental (que não físico, que esse não poderia estar mais exposto) dos indivíduos a conhecerem e darem-se a conhecer, a perspetiva de super-homens a caírem dos céus continua a ser, no mínimo, cativante. E depois de toda esta visão luxuriante de rapazes bonitos e pistas de dança, a criança que há em mim não consegue reprimir uma gargalhada infantil ao imaginar que, com o dom da aleatoriedade que me foi dado pela minha fada madrinha (que certamente era hippie e não estudou os feitiços como deve ser), o mais provável seria eu ser atingida por um desses senhores em queda livre, não tanto no sentido feliz da coisa mas muito mais no sentido do traumatismo crânio-encefálico.


Isto para dizer que há cerca de alguns meses, caiu um homem em cima de mim. De novo, refreiem-se os ânimos por favor. Não estamos a falar de uma coisa boa. Acreditem que não estão tão desapontados quanto eu. Quis a vida (ou a tal fada madrinha hippie que já imagino com uma nitidez perturbadora na minha mente de unicórnio), que eu conseguisse um lugar sentada num daqueles comboios sobrelotados ao fim do dia nos quais um simples lugar junto à janela é todo um oásis (apenas com menos água, zero vegetação e toda uma paleta de odores que o deserto evita por evitar o género humano).


Estando eu mergulhada neste meu momento pós-laboral de paz interior e plenitude, acontece que a cabeça do senhor que se encontra sentado à minha frente (e que tão tranquilamente dormia encostado ao vidro da janela), descai com violência, indo aterrar, qual melancia bombardeada por uma catapulta medieval, entre as minhas pernas. Juro, mas juro mesmo, que gostava de poder utilizar terminologia menos prosaica. Não obstante, esta é a única que encontro que me permite veicular o horror de nos depararmos com uma cabeça (indesejada) em tamanhas latitudes, ainda por cima inconsciente.


Ainda que esta não fora a minha primeira vez com indivíduos que me caem espontaneamente no colo em comboios. Recordo vagamente o meu sorriso de agradecimento ao senhor de calças verde-tropa que vociferou um eloquente “Opah! Olha aí a menina, pah, ‘tás a dormir ou quê?!” perante um pobre senhor semicomatoso que se dispunha a entregar-se nos braços de Morfeu ainda que isso implicasse, mais terrenamente, dar-me uma cabeçada no colo.


Só que desta vez o comatoso (não tem nada de semi, como verão) não acordou a tempo. Foi cair no meu colo de forma estupidamente desamparada e em vez de acordar com o impacto, como seria expectável e atrevo-me a dizer, de uma necessidade premente, ficou ali com a cabeça quieta curvado sobre mim. Como se estivesse morto.


Naturalmente, tomei a atitude mais adequada e que melhor se enquadrava à delicadeza que o número de observadores e o contexto envolvente exigiam. Comecei a gritar como uma desesperada. Não, não foi aquele gritinho pueril de criança feminina que até é fofinho, se não demasiado alto. Foi um daqueles berros contínuos de miúdo que entra na casa dos horrores armado em corajoso e saí dali com um susto para a vida. Daqueles em que não temos ar mas continuamos a gritar até ser só um gemido esquisito. E o pior é que não fiquei por aqui. Tentando enxotar a cabeça que me tinha sido tão violentamente arremessada, mas ao mesmo tempo sofrendo de um certo medo irracional de tocar naquilo (assim como quando a nossa melhor amiga nos diz que temos um inseto no cabelo e a nossa alternativa a retira-lo com calma é correr como uma louca num trajeto em forma de oito impossibilitando ainda mais que alguém consiga chegar ao bicho) a minha reação, de novo, adulta e maturada pela sabedoria dos meus anos, foi ir deslocando o rabo para a cadeira do lado. Tudo bem, não fosse essa cadeira estar ocupada por um outro senhor que, vendo-se acossado por mim desta forma tão descarada se viu obrigado a levantar-se e ceder-me amavelmente o lugar (isto antes que eu passasse diretamente para o colo dele).


Neste momento consigo finalmente libertar-me da incómoda cabeça. O que, como é óbvio significa que o hemicorpo superior do homem está agora completamente dobrado sobre o inferior, com ambas as mãos a roçar o chão e a cabeça prestes a atingi-lo. De novo, como se estivesse morto. Neste momento uma nova sensação de pânico volta a invadir-me. Nem reparo no que se passa a minha volta porque na minha mente as palavras “pessoa mais diferenciada” dançam a valsa alegremente. Bolas (vamos acreditar que foi nestes termos que pensei). Se não houver aqui nenhum médico sou eu que tenho de ver se a criatura está a respirar. Depois disto o pânico desaparece e preparo-me para fazer aquilo que é suposto que todos os estudantes de medicina conheçam, mas que eu própria não sei se saberei executar adequadamente. Quando estou prestes a aproximar-me, para tentar perceber se temos ou não um cenário de perda de consciência, vejo movimentos dos braços. Mas não são descoordenados. São lentos, tranquilos. Intencionais. Com a languidez de um ocioso do século XVII e sem nunca abrir os olhos, o meu sujeito, ainda completamente dobrado sobre si mesmo, começa a recolher os cartões, o telemóvel, a carteira… enfim, todos os pertences que deixara sujeitos à gravidade quando se projetou para o solo. Depois disto inclinou-se novamente para trás, apoiou a cabeça na janela e regressou ao estado inicial. Com grande pena minha, não começou a ressonar. Teria sido um toque ainda mais idiótico para enriquecer esta história.


Agora sim, dou por mim a reparar no que se passa à minha volta. Rostos estupefactos, incrédulos. Mas não olham para este senhor que discretamente sonha com o que imagino serem nuvens de algodão doce. Olham para mim. “Claro”, compreendo por fim, com horror. Esta criatura não fez o menor ruído quando montou o seu espetáculo de terror para mim. Eu em contrapartida, tinha sido a coisa mais ruidosa daquele comboio desde que a porta se fechara. E agora, todos os expetadores me viam a mim, a culpada do crime de perturbação da ordem pública na qual se incluía aquele modesto senhor, ali a descansar. Só os meus outros dois companheiros - o que estava ao lado do meu sonâmbulo e aquele que eu violentamente expulsei do seu lugar – poderiam defender a minha honra e ambos estavam demasiado ocupados a rir da minha cara.


A riqueza metafórica do meu desvario é imensa. Pensei muito nisto depois, apesar de que rescrever esta história me provoca, sobretudo, ataques de riso convulsivo. A personagem principal nem sempre é aquela que é mais visível e essa foi das lições que levei comigo. Afinal de contas alguma coisa boa teria de retirar desta pequena humilhação pública. Isso e o reforço vitalício da minha filosofia de evitar dormir em transportes públicos. Não vá acabar com a cabeça entre as pernas de algum desconhecido.


 
 
 

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