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Mais um comboio

  • thenutsbook
  • 16 de abr. de 2018
  • 4 min de leitura

Mais um comboio. Vou chegar perto do meio-dia à Invicta e tenho alguma esperança de ainda conseguir passear um bocadinho antes de me vir obrigada a regressar à base, no último comboio da noite.


Como é habitual, a ausência de WIFI funcionante - muito mais do que o verde vivo da paisagem - impele-me para a escrita, pedido a que eu acedo, meio contrariada por duvidar que tenha algo minimamente relevante a importunar a minha cabeça, pelo menos, o suficiente para que eu sinta a necessidade fisiológica de o cuspir para o papel.


Excepto que tenho. Ontem reunimos uma vez mais o selecto, estrambólico, errático e por isso nunca aborrecido quarteto fantástico que compõem as suspeitas do costume. Reunião de emergência, por motivos ainda mais emergentes: “alguém” estreava casa e “outro alguém” estreava namorado. Ambos – leia-se a casa e o namorado - acabadinhos de sair da loja e pelo que percebemos, quase em estado novo. Razões mais do que suficientes para um jantar.


Cumprimos religiosamente o ritual de estagiárias-stressadas-que-não-querem-cozinhar. Entrámos no Continente de carteira quase vazia e saímos de lá com pizza e Sommersby. Tudo o que é preciso neste mundo. Há sempre a mesma doida que prefere qualquer coisa cozinhada à mão durante horas como um rolo de carne ou qualquer prato igualmente maternal mas eu considero que vou ter bastante tempo para aprender a arte quando ela me for urgente (isto é quando já tiver de me comportar como uma pessoa adulta e decente que trabalha e cozinha e arruma a casa aos fins de semana) e que enquanto puder fazer vida de estudante comerei bombas hipercalóricas pré-cozinhadas como se se tratassem de lagosta.


Os pormenores do que significa brindar ao futuro na nova casa de uma criaturita que eu conheci antes de aprender a ler ficam comigo.


Mas a minha cabeça, que comanda os meus dedos sempre sem que eu consiga controlar empurra-os contra as teclas do mini-portátil no micro-apoio do nano-assento do meu aconchegadinho comboio. Temos todas a mesma idade mas por inerência à duração das nossas formações académicas, tenho ainda dois anos de estudante pela frente antes de poder organizar eu própria uma festa de inauguração de casa.


E ontem algo de estranho transformou a forma como os via. Como se os tivesse visto até então como alguém que vê o mundo estando no chão e os visse agora como um astronauta contempla a nossa insignificância desde o espaço. Finitos, pequenos, mensuráveis.


O sentimento de liberdade e despreocupação, que em mim são raríssimos, confesso, mas que sempre me conquistam quando relembro a minha condição de estudante escorreram através de mim no tempo que demorámos a esvaziar as garrafas (entenda-se, muito pouco). Tendo passado toda a minha vida académica entre atividades formativas, investigação, associativismo, livros e festas, eu que procurei não perder uma única oportunidade temo agora ter desperdiçado esse tempo, afinal tão fugaz. Mas em quê?


A dois anos de concluir os estudos, tudo o que ainda não fiz e pretendia fazer está mais ou menos agendando. Mas cair na realidade é inevitável. Faça o que fizer, por mais contorcionismos temporais que aplique na minha agenda (pobrezinha, já nem sabe que dia é hoje), as folhas do calendário vão chegar ao fim. Um dia, vou ter de acordar e perceber que ontem já era adulta. Uma visão que é nada menos do que perturbadora.


A paragem inesperada em Gaia é o pré-aviso de que a minha cabeça precisava. Já estou quase a chegar. É a ironia do universo a fazer-me festas na cara, ao de leve. Todas as viagens têm de terminar.


...


Isto foi o que rascunhei há escassos seis meses atrás, num dos muitos comboios inerentes à minha alma errante. Hoje, vejo-me obrigada a modificar o final que ainda nem estava escrito. Porque ainda não tínhamos chegado a Novembro e já a menina da casa nova tinha sido deslocada para outro local e obrigada a despedir-se dela e quanto à menina do namorado novo… estava a lidar com a ideia de que ter de pôr o temido prefixo de duas letras que nos diz que qualquer coisa era mas já deixou de ser.


Para trazer ao de cima uma metáfora usada demasiadas vezes, a estrada tem demasiadas curvas. Ao longo da vida, da minha própria, quantas vezes mudei de transporte, fiz transbordos, estive horas na paragem, subi e desci escadas (nunca tive paciência para esperar por elevadores, o que transformou as minhas aulas de Pediatria no 9º andar numa oportunidade de aeróbica), perder barcos e apanhar voos… e quantas mais foram as vezes em que tive de me contentar com abrandar, parar de todo, respirar fundo… e andar a pé. Arrastar-me quando foi preciso para chegar onde quer que senti que precisava. E como eu adoro andar a pé. Como eu adoro a viagem apesar de lenta, a paisagem apesar da chuva. De ficar encharcada à passagem dos carros e agradecer a Deus pelo segundo banho do dia.


A vida de estudante é um TGV, uma viagem alucinante a 300 quilómetros por hora. No fundo, igual à vida de qualquer outra pessoa, com qualquer outra ocupação. Uma coisa francamente maravilhosa. Que como todas as coisas maravilhosas, deve terminar para dar lugar à viagem seguinte. E ao sonho seguinte. De qualquer das formas, a paisagem será certamente incrível.

 
 
 

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