E de repente dou por mim a imiscuir-me alegremente num intrincado campo de minas. É bastante óbvio porquê. Escrever sobre a minha mãe grita perigo por tudo quanto é sítio. Primeiro porque em todo e qualquer texto deste género há uma certa linha de intimidade e do privado que não deve ser demasiado ultrapassada. E depois, porque tenho plena noção que se a dita cuja, (que vai aqui sentada no carro, ao meu lado, a discutir entusiasmada o planeamento estratégico por trás da futura localização da nossa maquina do café) soubesse que o que estou a rascunhar aqui tem sérias hipóteses de vir a público, eu estaria em sérios problemas. As emoções são um dos pontos fortes da minha mãe. Emoções em público, nem por isso. É normal. Ela é o improvável resultado do esforço conjunto de um militar de Abril e da filha de um militar franquista, sujeita a um nível de disciplina que, ironicamente, acabou por fazer dela a minha encarnação preferida daquela frase épica de Garcia Lorca: “Na bandeira da liberdade, bordei o maior amor da minha vida.”
O que, na prática, sempre foi mais engraçado do que poético. A miúda é doida. Sempre foi e acredito que se não fosse, nunca poderia ser a mãe que é.
Se não tivesse sido a adolescente que justificava as más notas a Matemática com um “Não tenho tempo para estudar professora. Os rapazes estão sempre a convidar-me para sair.”, talvez não fosse a mãe que me proíbe de chegar a casa antes das 2h da manhã quando saio à noite (sim, leram bem).
Se não tivesse pintado o cabelo de loiro oxigenado com 10 anos, talvez não me tivesse ensinado a usar a minha imagem como uma expressão de mim e não como mais uma extensão da norma social. E certamente que não me teria deixado pintar o cabelo de cor-de-rosa.
Se não tivesse sonhado em ser piloto numa altura em que as mulheres não eram aceites na Força Aérea, talvez não me tivesse impresso a palavra “feminismo” debaixo da pele, sem nunca sequer empregar esse termo.
Tenho para mim que a mini-pessoa que somos antes de entrar na adolescência tem muito a ver com as pessoas que os nossos pais são. Rio às gargalhadas ao recordar que fui a miúda que sabia o que era um preservativo aos 4 anos e que explicava à professora que não tinha feito os trabalhos de casa porque achava que não aprendia nada com aquilo.
E depois há uma outra questão. Sinto que a grande maioria dos pais tende a posicionar-se como juízes dos filhos. Perante os professores, os amigos ou a sociedade em geral. A minha mãe é advogada. Digo-o, não só porque acho que é a primeira coisa que ela diria para se definir a si própria, mas também porque é isso que ela é para mim. Não houve um dia da minha vida em que eu não sentisse que sou a sua primeira e principal cliente; em que o lado dela não fosse o meu. E não houve um dia em que não me espantasse com a sorte que tive por isso. Para a minha mãe, eu não vou entrar em exames. Nós vamos entrar em exames porque, nas palavras daquele ser humano magricela, “os teus sonhos são os meus sonhos e os meus problemas são os teus problemas.”
Tal como acontece com os advogados, também ela sempre soube que não valia a pena tentar fazer grande coisa para impedir que eu arranjasse problemas com a lei (ou neste caso, com o universo no geral). Ao longo dos anos, senti-a ver-me saltar de decisão duvidosa em decisão duvidosa sem sequer pestanejar. Vi-a aconselhar-me (quando se atreve, sempre com medo de me influenciar demasiado), esperar pela minha decisão e pôr-se aos saltinhos qual Casillas em frente à baliza metafórica da minha alma tentando defender o penalti. E agora, enquanto a Rádio Comercial decide passar a "Fix You" dos Coldplay e eu tento não chorar, acabo por recordar automaticamente, os milhares, milhões de vezes que esta mulher, tantas vezes sozinha no mundo, me curou a cabeça cansada, o coração partido ou os joelhos esfolados sem dizer absolutamente nada. Palavras também não são a coisa dela. Abraços sim, sem dúvida. E cada vez que aperto aquela criaturinha frágil contra mim, seria capaz de jurar que o mundo inteiro tem o cabelo loiro oxigenado e se escreve com 4 letras: mamã.