top of page
Buscar

13 dias

  • thenutsbook
  • 14 de ago. de 2018
  • 4 min de leitura

15h35 do meu décimo terceiro dia de vida em Salzburgo e só agora é que consigo pegar no cadernito cheio de autocolantes do Goethe que trouxe na mochila com a sensação clara de que ia precisar dele e com a ilusão absolutamente ingénua de que ia escrever nele todos os dias.


Uma pretensão dramaticamente descontextualizada, compreendo agora. Os últimos dias foram um completo desvio dos meus circuitos de processamento mental. O funcionamento normal (ui) da minha espalhafatosa existência consiste em esperar que me aconteçam coisas aleatórias para depois as desconstruir em papel. Assim tipo dissecção emocional. Sou completamente incapaz de interiorizar qualquer coisa que não esteja escrita, desde planeamentos financeiros a letras de música… ao ponto da minha agenda eletrónica (ui outra vez) ser um ficheiro word com o nome eloquente de GYST (ou Get Your Sh*t together).


Isto exige que haja um período de intervalo entre cada estupidez digna de ser processada. Aqueles 15 minutos que a Reinigungsteam aqui do hospital demora a apagar o aspeto pós-bélico do chão do bloco nº 10 depois de uma cirurgia de prótese da anca. (Direi apenas que se algum dia matar alguém, sei perfeitamente a quem telefonar. Desculpa, Kim Possible.)


Há 13 dias que não tenho 15 minutos. Por um monte de razões boas. Excepto agora mesmo. De modo que me refugiei no parque em frente ao Centro de Congressos (pancas de associativista) rodeada de banquinhas de artesanato (tentativa mais ou menos consciente de substituição afetiva das bancas das Festas do Mar, que eu vou perder pela primeira vez este ano). De uma delas, desprende-se qualquer coisa que parece jazz, assim na distância.


Começo por ler as únicas páginas do caderno que estão escritas. As linhas que rascunhei quando ainda estava no voo e que, por um milhão de razões, não são próprias para consumo. A pessoa que as escreveu estava infinitamente mais cansada, mais velha e mais pesada – em ambos os sentidos – que a que escreve agora. Se quando me candidatei a um intercâmbio há já quase um ano, o via como uma oportunidade de crescimento e de melhorar o alemão, às 6h02 do dia 2 de Agosto, esta criatura olhava para ele como toda uma boia salva-vidas, um retiro, um exílio, um campo de reabilitação para toxicodependentes. Só que sem a droga, feliz ou infelizmente. Um mês de calma. E sim, acordar às 5h45 todos os dias, engolir um iogurte e apanhar o autocarro das 6h18 para começar a ronda da enfermaria às 7h é toda a calma de que eu preciso. Num lugar onde ninguém teria interesse em me bombardear com a palavra “finalista” e onde eu podia ganhar balanço antes de ter de me portar como uma pessoa crescida outra vez.


Acho que o feitiço resultou desde a descolagem. Desde a minha companheira de viagem alemã (que me fez tantas perguntas que quase senti que estava a ter uma aula) à bênção que foi entrar no meu quarto pela primeira vez e voltar a descobrir que a felicidade às vezes passa por estar à janela durante o por do sol. É claro que a última anotação que tenho desse dia é qualquer coisa como “Where did all my money go?”; mas aos 13 dias de retiro, hei de dizer que a maioria das histórias dignas de registo não me custaram nada. Vá, paguei 10 euros para ver um Misson Impossible: Fallout dobrado em alemão com um Tom Cruise (perdão, Crrrrrruise) sonoramente irreconhecível. Mas também dei por mim a enviar mensagens com coisas como “acabei de atravessar uma ponte a correr enquanto era perseguida por um enxame de abelhas” e “tenho uma chinesa a cantar aos altos berros deitada no chão do meu quarto”.


(Momento de pausa para agradecer a Deus Nosso Senhor por me ter feito desistir da ideia de pintar o cabelo de laranja para este intercâmbio, porque já era aleatoriedade a mais, até para mim.)


Falando em Deus, fica também o registo de que na missa se aprende imenso alemão, basicamente porque – e penso que isto é mandamento universal – os padres são obrigados a fazer devagarinho. E porque me costumo confessar mais ao papel do que a eles, falta-me confessar as saudades de casa, factor extra a quem atribuo a culpa de cerca de metade das coisas hemi-estranhas que me têm acontecido nos últimos dias. Como ter enviado uma carta por correio à minha mãe apesar de falar com ela por Skype todos os dias (sim, não me julguem, que isto do papel é sempre diferente); ou ter deixado toda a gente plantada ao jantar por duas vezes para ir a correr ligar o computador para ver os dois jogos do Porto que aconteceram desde que estou cá. Ou… ou… meu deus que isto por escrito ainda é mais humilhante… ter tido de limpar uma lágrima idiota no canto do olho ao entrar por acidente numa pastelaria chamada Casa Portuguesa a poucos metros da Catedral, com uma montra cheia de pastéis de nata e a foto do Ronaldo no canto.


Vergonhas à parte, esta é uma viagem que, por dentro e por fora, já provou o seu valor. Hoje mesmo, ao início da tarde, dei por mim a dançar na rua, feita parva, quando um daqueles músicos do costume achou por bem atacar a Garota de Ipanema no meio da Mozartplatz. A garota de Lisboa gostou e lembrou-se que já não dançava na rua há demasiado tempo. E depois sorriu daquela maneira que costumava fazer com que as pessoas olhassem para ela como se ela fosse idiota. Sou mesmo. E ainda faltam 17 dias.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Ansiedades e Ansiolíticos 28/03/2025

Coisas bonitas que ouvi no Congresso de Medicina e Literatura: - Medicina e Literatura são 2 formas de contar histórias - O meu avô não...

 
 
 
Ansiedades e Ansiolíticos 17/03/2025

- Os travões ou a falta deles. Foi mesmo no início da semana quando travei a fundo no meio da estrada que se estende em frente à estação...

 
 
 
Como é que eles se atrevem?

Nao quero roubar a deixa à pequena Greta Thunberg mas é a única reação que tenho enquanto assisto à mais trágica peça de teatro que vi...

 
 
 

留言


nozes que juntam palavras

© 2017. Proudly created with Wix.com

bottom of page