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Fascination

  • thenutsbook
  • 30 de ago. de 2018
  • 3 min de leitura

Saio de casa sabendo que vou apanhar uma molha monumental. É isso que acontece quando se compram impermeáveis que estão muito melhor numa capa de revista do que numa cidade chuvosa às 10h da manhã. Pelo menos é uma molha carregada de sentido estético. E de nostalgia, naquela que é a minha última manhã em Salzburgo.


Pela primeira vez, dou por mim sequestrada entre duas saudades, a de lá e a de cá, que puxam cada um dos meus braços como duas crianças pequenas. Abstenho-me de explicar as saudades de casa, sofridas na pele pelos amigos que não parei de chatear o mês inteiro. Não obstante, não posso ignorar o bem que esta cidade pequenina me trouxe, encharcada (neste momento, de forma bastante literal) numa filosofia que se coaduna muito mais com a minha forma de ser do que qualquer outra que tenha encontrado.


O rigor e a eficiência que caracterizam estas pessoas vão muito para além do estereotipo que se lhes atribui, exigidos com tanta veemência ao próprio como ao próximo. Ficará para sempre na minha memória o sermão de um especialista aos seus internos por terem esperado por ele até às 7h03 para começar as visitas das 7h. Suspeito que é daí que vem a simpatia com que acolhem qualquer pessoa que queira trabalhar, aprender ou ser útil seja de que maneira for. Trata-se de uma frase bonita mas obriga a uma certa reflexão face à realidade de que o Salzburg Landeskrankenhaus me ofereceu mais condições de trabalho e oportunidades práticas de aprendizagem num mês do que o meu amado (sem ironia alguma) Hospital de Santa Maria em cinco anos de propinas e pestanas incineradas.


Mas foi mais do que aquilo que aprendi. Foi também uma demonstração contínua de abertura, de tolerância e de cultura, não como um corpo patrimonial estático, mas como um fluxo de conteúdo humano permanentemente acrescentado e modificado. Que é como quem tenta explicar como foi possível que no meu terceiro dia de viagem tivesse assistido a uma ópera sobre dependência das tecnologias e que nas últimas 48h os meus ouvidos tenham entrado em contacto com um "Despacito" para violino e um "Bella Ciao" em versão eletrónica.


Uma palavra para os micromomentos. Os sinos que tocam por minutos a fio aos domingos. As senhoras de idade que me perguntam onde é o mercado, como se eu fosse uma residente e a minha cara de espanto que lhe está associada quando compreendo que não só sei a resposta como até a consigo articular num alemão quase decente. (Tendo em conta que metade dos desconhecidos que me abordam em Lisboa o fazem em inglês, se calhar devíamos mudar de cidade.) Os turistas que dizem coisas como "La família tiene que estar cobrando una pasta en derechos de autor" quando descobrem os patitos de borracha com a cara de Mozart que se vendem por todo o lado. O esforço constante de processar em 4 línguas diferentes a toda a hora (português para as saudades, espanhol para metade das colegas de intercâmbio, inglês para a outra metade e alemão para tudo o resto, o que inclui ler 25% do jornal e ficar a olhar com cara de tonta para as palavras que compõem os restantes 75%. A rapariga que começava a cantar cada vez que passava naquela rua onde o mesmo clarinetista não desistia da "Fascination". Ah espera, essa era eu. E apesar de sempre ter adorado a voz do Nat King Cole a derreter-se sobre aquelas palavras, acho que não podia ter encontrado melhor sítio para deixa-las voltar a ecoar cá dentro.


Wiederschauen, Salzburg.

 
 
 

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