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Café da manhã



- Acho que vou sair. Vou para o apartamento trabalhar um bocado.


- Agora? Disse ela soletrando a palavra muito cuidadosamente, a tentar fingir que não tinha quase deixado cair a colher da sopa. A minha mãe nunca controlou as horas a que entro ou saio de casa. A preocupação na voz dela é simplesmente a de quem já sabe a resposta à pergunta que acaba de fazer.


- Preciso de pensar.


Silêncio. Pronto, estamos fritos. "Preciso de pensar." vindo da minha boca é uma frase mais perigosa do que "Vou ali assaltar um banco." Mais credível também, obviamente. Porque ela sabe o que eu quero dizer. Quero dizer "Olha, a tempestade que vai na minha cabecinha vai engolir-me outra vez por isso preciso de ir passar-me para um sítio onde mais ninguém me veja, percebes? Agora fica aí a processar esta informação enquanto eu vou buscar as chaves." Para mais, sejamos realistas. Tinha voltado do intercâmbio no início do mês. Tinha voltado de Madrid no dia anterior. A este ritmo era legítimo perguntar se as minhas crises existenciais não iam precisar de se expandir para a Ásia.


- Leva os documentos do carro. E vai devagar.


Atiro um par de livros para a mochila com a velocidade de quem tem sempre a coisa meio preparada, just in case. A beleza dos velhos hábitos confortáveis. Subir, pegar na mala, descer. Demoro uns 5 minutos, no máximo. Volto atrás. Os documentos do carro. Caramba, a rapariga deve ser vidente.


- Fiz-te qualquer coisa para comeres. Está aqui. Se quiseres levas, senão, não faz mal.


Saí de casa a pensar na quantidade de seres humanos deste mundo que davam o rim direito para ter as mitocôndrias de uma mulher como aquela. Bolas, que bonitas mitocôndrias.


Ainda não conheci melhor droga que o som de um carro a ligar-se. Falta de experiência, naturalmente. Mas para mim serve. Mesmo com Lisboa em hora de ponta. Demoro quase 1h a fazer os 40 Km que separam o meu poiso habitual do apartamento que era dos meus avós e que passou para nós naquele 2014 que ficou conhecido entre as minhas folhas de rascunho como o pior ano. É ao quarto que era deles que vou mal fecho a porta atrás de mim. É naquela cama que me deito e fecho os olhos e peço desculpa por ficar ali quieta. Cá em casa temos por hábito passar-nos enquanto fazemos coisas, para não perder tempo com disparates. Assim, tomo as únicas duas decisões sensatas que se podiam tomar naquele momento. 1) Vou buscar o portátil que tinha deixado aqui, tal como a mochila, de prevenção. 2) Abro um pacote de bolachas. Ninguém no seu perfeito juízo se atreveria a pensar com fome.


Cumpri o que prometi. Trabalhei até esvaziar a lista, a que levei e a que fui arranjando à medida que as horas passavam. Balanços, dúvidas parvas da tese, textos para escrever. Papéis. Demasiados. Preocupações. Menos, há medida que punha o meu pequeno mundinho em ordem apenas para o voltar a desordenar à primeira oportunidade.


3h da manhã ou, dito de outra maneira, a hora normal a que qualquer pessoa (também ela muito normal) pondera voltar para casa. Antes de sair, cumpri o ritual do costume. Chávena. Cápsula. Botãozinho a piscar. Café. Forte. Para ser bebido em frente à varanda, a olhar para o Tejo. O mesmo desgraçado monte de água que suporta estoicamente o meu voyerismo, desde aquele ponto estratégico do meu forte, desde que me lembro de ser eu. Agora. Antes, em vésperas de orais de Anatomia. Antes delas, em vésperas de exames de Matemática. E sempre, mas sempre, que o mundo se torna demasiado grande e confuso para o meu metro e sessenta e quatro.


Cheguei a casa às 3h30, despi-me com a pressa de quem tem o George Cloney à espera e enfiei-me na cama. Sofri dos 60 minutos de insónia que quem bebe café a estas horas trata por tu. Antes de adormecer, lembrei-me do que escrevi a mim própria quando saí de Salzburgo. Qualquer coisa como "Cuidado criatura, que assim que voltares a Portugal não penses que vais ter um refúgio como este a cada ataque de pânico que tiveres."


Eu ,de facto, sou mesmo muito tonta.

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