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De algodão doce

  • thenutsbook
  • 22 de set. de 2018
  • 4 min de leitura



Tratou-se certamente de um milagre. Só um alinhamento planetário global daqueles que acontecem a cada par de milénios é que poderia explicar que naquela noite, a resposta à minha mensagem "Jantar na 5ª feira?" tivesse sido "Sim". Não um, mas três! Sim, Sim e Sim! Um atrás do outro, mesmo à minha frente, que olhava para o ecrã do telemóvel com uma incredulidade e entusiasmo apenas comparáveis aos do minuto 116 da Final do Mundial de 2010. Até a coreografia é semelhante: salto do sofá apenas para correr pela casa toda, sem destino nenhum, a pensar que um dia vou contar aos meus filhos como a mamã viu aquilo acontecer.


Toda a gente sabe que conseguir reunir um grupo de amigas na mesma data, nem que seja para beber um copo de água, é uma tarefa comparável a uma maratona. É preciso uma resistência emocional considerável, que não se desista à primeira adversidade (ou ao primeiro "Hmm... nesse dia não me dá muito jeito...) e sobretudo, que se corra por gosto. E nós já corremos lado a lado há quase duas décadas. Primeiro, com os pezinhos no ar, desde os bancos de trás dos carros das mães. Depois, com os pés bem assentes no alcatrão debaixo dos nossos patins em linha. E agora ao volante dos nossos próprios carros, com outro tipo de corridas em mente.


Mas naquele dia não foi preciso insistir e eu até sei porquê. Estávamos há um mês sem nos ver e numa fase das nossas vidas em que simplesmente começava (e começa) a haver demasiada coisa em jogo. E já nem todos os problemas se resolvem com o pé no acelerador.


Portanto, 5ª feira. A chauffeur destacada para aquela noite apareceu pontualmente (ou seja meia hora depois do previsto) e fez o percurso pelas três casas restantes. Quem entra faz um resumo dos acontecimentos do género "Relatório de Atividades da Direção da minha vida" desde a última Reunião da Assembleia Geral. Falamos mal dos Associados ("Espera, mas ele não te voltou a ligar?!") e discutimos os problemas com o Senado ("É melhor não contares isso à tua mãe..."). Quem entra ouve a leitura da Ata que foi sendo lavrada desde que a primeira entrou no carro antes de poder acrescentar alguma coisa. Ou seja, a coitada que vem a conduzir desde o início acaba por ter de contar a mesma história 4 vezes. Mas ela não se importa. Muito.


É claro que a única coisa remotamente comestível que o nosso bar fetiche estava a servir àquela hora era a fruta que vinha com os cocktails. Condenadas a rumar à opção número 2 e esfomeadas como lobos, quase mordíamos a Ubermiúda que fez questão de deixar o carro no lugar mais longínquo da rua mais comprida. Até que saímos do carro.


Eu e as minhas amigas andamos sempre de braço dado. O leitor escusa de se dar ao trabalho de sugerir que tal atitude é vagamente pindérica. Eu auxilio-o. Não há nada de "vagamente" no espetáculo que se monta quando 4 miúdas com idade para ser gente saem do carro, entrelaçam os braços, demoram meia hora a discutir se é o pé esquerdo ou o direito que deve avançar primeiro, e finalmente se decidem a avançar. Escusado será dizer que apesar de parecermos as capitãs da claque de algum liceu americano, sofremos também do efeito da senhora obesa que sente que ocupa mais espaço do que deveria. Andar no passeio é impossível, toda a gente sabe que os passeios para peões de Portugal mal dão para duas pessoas quanto mais para 4, a caminhar no mesmo sentido. É mesmo no meio da estrada que nós andamos, um bocado indiferentes a quem apita e gesticula com as mãos (Não é o dedo do meio, meu caro senhor, são 4. São mesmo os 4 dedos, um por cada uma! Ora uma boa noite para si também!).


- Olá!!!


“Oi!? Quem é que falou?”, pensou a minha mente bêbada enquanto o meu corpo sóbrio se virava em todas as direções arrastando as outras três comigo. (Quem pensa que a vida é um arame sem rede, nunca caminhou de saltos altos agarrada a 3 pessoas.)


Demorámos todas demasiado tempo a perceber que a pessoa que falara media, no máximo 1,10.


- Olá!!! - Disse - e desta vez vimo-la bem - a miúda mais cor-de-rosa, mais adorável e mais pequenina que eu já vi. 6/7 anos, talvez.


Por um momento, senti o pânico coletivo na respiração das 4. Durou os segundos que demorámos a encontrar o pai, que observava tudo a escassos metros de distância com aquele sorriso babado que eu sempre vi nos pais daquelas três.


- Olá!!! - Respondemos em coro (porque já não parecíamos anormais o suficiente).


- Vocês são tão bonitas!


Estou certa de que imaginar a nuvem de algodão doce hemiderretido em que nos tornámos não deve ser muito difícil. Não tanto pelo elogio. Pela doçura de toda a coisa. Esta princesa ainda não passou pela máquina de prensar que é viver em sociedade, por mais maravilhoso que isso seja em traços gerais. Ainda não sabe o que são borbulhas, cortes de cabelo milimétricos, modas ou padrões. Medidas, standards de ser, de estar, de medir, de vestir. Limites que nos são impingidos e através dos quais as 4 fomos passando como quem passa pelos lasers da sala principal de um museu antes de poder roubar o quadro mais bonito. Ora tentem lá fazer isso de braço dado. Somos mulheres e somos crescidas (às vezes) e parecemos (e somos mesmo, graças a Deus), felizes. E isso torna-nos bonitas aos olhos dela. Quem me dera que ser feliz fosse o padrão convencionado.


- Daqui a uns 10 anos vens sair connosco, pode ser? - Atirei eu a desejar por dentro que ela tivesse tanta sorte como nós quando escolhemos com quem queríamos sair.


- Sim! E vamos à praia juntas todo o dia! E toda a noite! (Não. A música do Toy ainda não tinha saído. É que nem se atrevam a estragar isto.)


Ficámos por ali. Claro, estávamos cheias de fome. Prioridades. Lá fomos nós, pelo restante da rua quilométrica que nos calhava percorrer até ao Santo Graal do colesterol. Isso sim, 4 pés direitos perfeitamente sincronizados. Com uma nota particular. Raras são as vezes em que estou totalmente certa de que estou a fazer alguma coisa bem. Mas durante aquele minutinho, com o estômago vazio e o coração cheio, lembro-me nitidamente de pensar que enquanto tivesse o grupo de amigas que as meninas da primária querem ter, então não estaria a fazer tudo mal.

 
 
 

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