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Manual de uma emancipação: Paris.



Ora aqui está uma situação francamente atípica. Normalmente, escrevo sobre a marcha. Que é uma tradução direta do espanhol que quer dizer que os meus cadernos sempre foram a CMTV da minha vida. Na mesma hora, no minuto seguinte, em cima do acontecimento.


Só que depois do exame congelei. Ou o contrário. Tudo o que normalmente punha no papel foi convocado para a vida. Acordámos os neurónios comatosos, os cardiomiócitos atordoados. Pusemos o cérebro na embraiagem, o coração no acelerador, o estômago nas mudanças. O travão logo se vê. E as mãos largaram a caneta para se porem ambas ao volante. Às 10h e às 2h.


E agora? O caminho é grande e o carro acha que dá mais do que consegue mas acho que a velocidade de cruzeiro e a suavidade (ou antes a inclinação calculada) das curvas oferece segurança suficiente para retirar uma das mãos do volante e coloca-la em movimento sobre o caderno. Só por um bocadinho.


E dizer que “o difícil é começar” nunca foi menos cliché. Não sei se posso exatamente pegar no fio onde o deixei. Em bom rigor, não sei se ainda há fio. Nada é como era, quase tudo está melhor e a culpa.. é maravilhosamente minha. Prometo tentar, pelo menos, oferecer-vos uma transição mais suave que aquela que me autoimpus... Uma onde não possam faltar os combates contra os moinhos de vento das Energias de Portugal (EDP não lhes faz justiça e energia, asseguro que a têm, está é mal aplicada), mas onde também se permita omitir as intermináveis melodias de espera da Autoridade Tributária e uma ou outra crise de choro noturna.


Mas antes de tudo, houve Paris. Graças a Deus.


Paris foi um estado de graça. Uma espécie de animação suspensa, parecida à do Intercâmbio. Mas desta vez, com o curso feito e o exame já pelas costas. A flutuação perfeita. O tubo de ensaio e eu a boiar lá dentro.


Durante os primeiros dias limitei-me a matar a fome. De museus, de parques, de ruas, de ar puro, de tudo o que a vista pode alcançar quando se alça acima dos livros. Mais tarde, passei a sofrer de uma certa síndrome de ninho vazio, ainda pouco ciente de que quem tinha saído era eu. Só conseguia pensar nos meus caloiros. Eu sei. Se algum membro daquele querido curso de 14-20 ler isto, irá sofrer uma pequena convulsão raivosa. Mas peço que contextualizem, Para alguém como eu, da colheita 13-19, vocês são uma espécie de primeira ninhada. E é muito difícil ver os nossos cachorrinhos crescerem, começarem a ladrar pelos seus direitos e até - valha-nos Deus! - tornarem-se finalistas. Apesar disto, confesso que, no final da primeira semana, abracei o lema da Noite da Medicina deles e daquele Salvador Sobral que me fez chorar baba e ranho: de facto, já tinha tido a minha conta de serões serenos. Só me restava mesmo tentar ir dançar.


Acho que consegui. Dancei até me doerem os pés, numa cidade propícia a fazê-lo. Até esquecer tudo o que tinha doído durante aquele ano em que os acontecimentos extra-exame tiveram abrangências de todas as especialidades. De tal maneira que até pude dar-me ao luxo de suspender a terapêutica analgésica e percorrer a maravilhosa ponte entre escrever porque preciso e escrever porque posso. (Mesmo agora, às 3h10, de banco na Urgência Pediátrica do Santa Maria - aproveitando que não há doentes para ver - para organizar as ideias).


Na realidade, mal toquei no papel durante os meus dias de exílio voluntário, no contexto de um investimento inusualmente grande de contrariar o instinto de instrumentalizar todos os gestos do dia-a-dia. De ser eficiente e produtiva. Que estranho. Nunca me tinha apercebido que a ideia de “perder tempo” me gerava ansiedade mesmo quando não tenho prazos impostos por terceiros para cumprir. Pior ainda: dou por mim a inventar prazos, a fabricar tarefas. Mas que pessoa normal é que faz isto? Hm, pois. Bem, há problemas piores, ou pelo menos, curas mais desagradáveis, porque a que prescrevi a mim própria consistiu em impor-me o mínimo de regras possível. E, de facto, há todo um mundo à nossa espera quando a única pergunta a que temos de responder quando acordamos é “o que é que me apetece fazer hoje”?


Ironia pura ter-me sentido no auge da minha liberdade interior no meio de uma cidade que me pareceu sitiada a partir de dentro, entre os dias iniciais de uma das maiores greves dos últimos tempos e o permanente nível de alerta de terrorismo que, na prática, se traduz em coisas como não conseguir entrar numa Sephora sem passar por um detetor de metais.


Recordo dois pequeninos Nirvanas bem no centro daquele maravilhoso cofre de luz e cimento. Primeiro, a sala de pintura espanhola do Louvre. Porque aí, todas as tentativas de não planeamento e de fazer uma visita descontraída esbarram na imensidão da coisa. Não era a primeira vez que ali entrava e estava mais do que consciente de que quem tenta levar a coisa “com calma” (Jesus, que palavra terrível) acaba por ver muita coisa bonita, certamente, mas nada do que pretendia ver quando começou. Assim que substituí temporariamente a tranquilidade por uma lista pormenorizada dos alvos e das respetivas localizações. Um bocadinho de preparação nunca fez mal a ninguém certo? Errado. É necessário um monte de preparação porque mesmo assim há sempre algum sector que está em obras o que obriga a encerrar alguns dos acessos e faz com que nos percamos na mesma. De maneira que o destino me guardou o melhor para o fim e me levou direitinha à minha sala mais querida numa altura em que a minha alma já levava consigo umas 4 horas de arte… e os meus pés também… pelo que entrar ali dentro e descansar os meus olhos sobre o primeiro Goya que vi foi qualquer coisa muito parecida com simplesmente chegar a casa e tirar os sapatos.


Os Nenúfares foram outra coisa. Uma estreia, na verdade… e uma sorte tremenda, também, porque àquela hora, naquele dia de manifestações anunciadas um pouco por todo o país, aquelas duas salinhas cuja abertura - como a própria Orangerie indicara no site - não era certa, lá arranjaram maneira de abrir. E lá dentro, não seríamos mais de dez.


Tomei o meu tempo. Assim como quem mergulha numa piscina logo às primeiras horas da manhã, quando não há ninguém por perto. Quando somos só nós e aquela massa imensa de água. Só que esta água tinha todas as cores do mundo e, pela primeira vez em muito muito tempo, não me fez impressão nenhuma dispender uma manhã assim, perdida entre comprimentos de onda e sem lista de tarefas - real ou imaginária - a que corresponder.


Claro que estas mariquices todas não podiam durar para sempre. Nem eu aguentaria uma ausência de propósito prático tão prolongada. Mas serviu a iniciativa para honrar o propósito intrínseco dos “dias sem rotina” (que agora que já somos função pública já podemos fazer apropriação da terminologia).


E estava eu num destes últimos, caçando palavrinhas para me fazerem companhia naquele café por onde andava Hemingway há umas décadas atrás (como eu me senti indigna ao pensar que me sentava nos mesmos sofás onde aquele literário traseiro descansava) quando dei de caras com o perfeito sósia do mesmíssimo António Lobo Antunes, lendo placidamente um Washington Post apenas a duas mesas de mim.


Detive-me uns 10 minutos a olhar fixamente para ele, como quem olha para uma escultura grega. Pensei no irmão dele. Na única palestra que lhe ouvi, uma das últimas que deu, e da maneira como me vi arrastada como um íman para a homenagem que lhe prestaram quando rebaptizaram o Grande Auditório com o nome dele. De como não o vi por lá, entre a feira de vaidades hierarquicamente sentada à minha frente naquele auditório mas como o encontrei mais tarde, em plena sala de alunos e não tive coragem de lhe ir falar.


Bem, parece que essa questão ficou resolvida porque, desta vez, aproximo-me de facto, para verificar se é mesmo ele… o que resulta profundamente ridículo porque dou de caras com uma expressão de estupefacção e um par de palavras numa língua que não reconheço… acabando por me evaporar do sítio rapidamente sob o olhar entre incrédulo e censurador do gerente. Ainda bem que acabei de comer a Tarte Tatin antes de fazer aquilo. Lição aprendida de não perder a primeira oportunidade de abordar desconhecidos de relevo. E claro: quando passamos a ver paredes cinzentas da sala de alunos sobre sofás de pele dos cafés de Paris é porque está na altura de voltar a casa. E lidar com os conhecidos.

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