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Manual de uma emancipação: Nova Iorque


Não devo conseguir dormir hoje. Não agora, pelo menos. São duas da manhã e tenho bem mais do que duas coisas na cabeça. Uma delas é uma música. Estico o braço para o telefone e ponho-a a tocar. Eu sei que já temos telefones que pensam há muito tempo mas a ideia de ter uma música na cabeça e conseguir pô-la cá fora no minuto seguinte continua a parecer-me magia. Não interessa; quando o Jack Antonoff chega às palavras que pressinto que vão definir a minha noite (I can't sleep tonight), já eu estou sentada de computador ao colo. Para começar a tornar realidade outras coisas que também se passeiam cá dentro.


"Promete que vais pelo menos tentar ser mais cautelosa com quem escolhes ❤ Porque tu continuas a passar pela mesma história e não é isso que eu quero para ti. ❤❤"


E foi assim - miúdos - que a minha melhor amiga me fez sentir como uma palavra de quatro letras. E me provocou uma pequena - pequeníssima - insónia inicial, pelos vistos. Claro que não foi intencional. A criatura adora-me. Fazer com que eu me sinta insultada é um efeito secundário do amor dela e lido bem com ele. Sobretudo porque não lhe ligo nenhuma. Mas se não lhe ligo nenhuma, porque raio estou às voltas no sofá - nem sequer cheguei à cama - há pelo menos duas horas?


Se calhar, até a percebo. Já lhe leram este guião várias vezes. No fundo, sou como os Morangos com Açúcar, só mudam os actores e vamos todos ficando um bocadinho fartos da mesma coisa. Especialmente eu.


A culpa é minha, por ir a correr para o WhatsApp fazer queixinhas. Toda a minha vida a ser um daqueles bebés-Método-Ferber que se acalmam sozinhos para agora virar o raio de um Ferbie a precisar de mimos. A retorcer os neurónios como roupa molhada à procura das palavras certas para dizer que não precisava de conselhos. Ali não. Que o que eu precisava mesmo era de um abraço de uma amiga e não da porcaria de um julgamento. Mas desde quando é que eu preciso de alguma coisa seja de quem for?


Não preciso. Porque já estive aqui umas quantas vezes. Já escorreguei muitas vezes para os dois lados da montanha: o de pôr a culpa neles e o de pôr a culpa em mim. E em ambos os casos acabei por escolher fazer sempre a mesma coisa. Coser o que houver para coser e voltar a subir. Tenho páginas e páginas escritas com maneiras diferentes de perguntar se foi desta ou daquela que sangrei a última gota, que rompi o último ponto. Mas sabem que mais? Estava - e acho que continuarei a estar de cada vez que o disser - sempre enganada.


Para mais, o que é que eu fiz de tão errado assim para levar a sério aquela frase? Repeti assim tantas vezes a mesma história? Não. Quem me dera divertir-me tanto como as minhas amigas pensam que o faço. Ser o poço de carácter e autoconfiança que elas pensam que eu sou. Eu que fico envergonhada até para tirar uma fotografia.


De qualquer das formas, factos são factos. E o dicionário nunca mente. Uma palavra de quatro letras pensa com a carteira. Sob o olhar machista da sociedade em que vivemos hoje, uma palavra de quatro letras até pode pensar com o clítoris. Mas eu, que levo toda a minha vida a tentar pensar mais com o cérebro, nunca fui muito eficaz a pensar com nenhum dos três. E Deus sabe como a vida poderia ser mais interessante se utilizasse mais os dois primeiros ou menos dolorosa no caso do último. Mas sou um caso perdido.


Para além do mais, lembro-me de tudo. De todos. Sou como o armazenamento do Facebook. Guardo aquelas mensagens que já não vemos porque estão muito lá para cima mas que são tão fáceis de resgatar como as que enviámos ontem. Acho até que o caso é mais grave do que "simplesmente guardar". Sou como o mural feito de fotografias, a cronologia inteira de uma só vez. Incorporo coisas que se tornaram minhas e que hoje são eu. E agradeço-lhes, agradeço-lhes tanto por tudo o que ficou cá dentro. As camisas de linho. Os Artic Monkeys. A eterna debilidade pelo Sporting (desde que o Porto não esteja metido ao barulho). Os discos do Hugh Laurie. As pastilhas de mentol. E por todas as vezes que tomaram conta de mim para depois me ensinarem, uma e outra vez, a lição mais importante de todas. Que não preciso que ninguém o faça. Essa; e pelo menos mais metade das frases-modelo de livro de autoajuda que vão servindo de primeiros socorros (e Medicina Preventiva) aos que estão à minha volta. Como naquele dia de Verão em que alguém numa camisa de linho se lembrou de constatar o óbvio (“És louca, Pilar. - disse a camisa), dando-me oportunidade para responder - e aqui estou a ver-me claramente, ridícula figura; cabeça para baixo, pernas no ar por cima do baloiço de criança onde já mal cabia, cabelo ainda a duas cores a esvoaçar pela cara inteira) - pela primeira vez, as palavras que iria levar escritas debaixo da pele para o resto da vida, sempre em tom de desafio: se não te vais divertir, para que é que vais viver?

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