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Estamos todos bem.


Deve ser das minhas frases preferidas. Detesto o filme homónimo, a imagem permanente de um Robert de Niro em esforço incessante de manter nas posições devidas todos os pedacinhos do vaso que se vai partindo ou já se partiu sem que ele desse conta. É demasiado realista. Talvez por isso, quando a ouvi, guardei-a logo no repertório permanente. Repito-a para dentro algumas dezenas de vezes por dia e pelo menos uma vez por semana quando alguém pergunta com os olhos se tenho tudo controlado. E é remédio santo. Esse plural. Dá a ideia de que a vida é uma linha de montagem e de que eu vejo tudo o que se passa desde a minha lista com quadradinhos. Ainda que mais frequentemente seja um TGV e eu esteja determinada a passear em cima da linha.


Metáforas à parte, a taxa de utilização das minhas palavrinhas de resgate disparou proporcionalmente ao número de casos de COVID. Demasiado cedo? Não. Na altura certa, diria. Porque é precisamente por isso que estou constantemente a responder a perguntas que a justificam.


Pensei bastante antes de me pronunciar sobre a pandemia fora dos círculos mais privados. Sobretudo porque tenho sentido um certo nojo da comunidade digital que todos constituímos, apesar das várias honrosas excepções. Na verdade, o espectáculo deprimente a que todos temos assistido não me deveria surpreender. Tudo não passa de uma amplificação, condensada no tempo, daquilo que compõe as redes sociais. Aproveitamento das circunstâncias para fins pessoais, recomendações fabricadas sem vestígio de evidência, informação taxativamente falsa, humor - justo e necessário - e algum - significativo, felizmente - serviço público. Temia seriamente integrar as primeiras categorias e tinha a certeza absoluta da minha incapacidade de acrescentar algo às mensagens verdadeiramente úteis que já estavam a circular.


Até porque eu própria já travava as minhas batalhas no plano mais restrito. Embrulhada - como quase todos, imagino eu - em tanto grupo de WhatsApp que assume bandeiras sobre as quais nada sabe e que à falta de campeonato de futebol arranja clubes alternativos com siglas como AINE’s e IECA. Sufocada - como quase todos também - entre a parede dos saltimbancos de supermercado, a dos ladrões - assim, a seco - de material hospitalar, a dos que decidem transformar a quarentena numa viagem de finalistas e a dos que ensinam a fazer desinfectante em casa e apregoam reforços milagrosos do sistema imunitário. Quatro paredes de ignorância.


Já agora, bem podem proibir as touradas à vontade mas os povos ibéricos irão sempre tratar de fazer sangue jorrar de algum lado. No espaço de poucos dias desmenti 5 vezes que a minha Enfermeira-Chefe estivesse infectada - algumas vezes com ela ao meu lado, com o sorriso de quem não é novata nisto de afugentar necrófagos - e neguei a primeira morte mais vezes do que as que consigo recordar.


Ao fim de algum tempo, acabei por vir refugiar-me aqui. Porque na realidade, todos temos uma experiência diferente. Sobre o medo, sobre a linha da frente.

Primeiro, vieram os pavões. A reunião de 600 profissionais de saúde na mesma sala (de avaliação de risco discutível, diria). As tendas lá fora. As frases sonantes. “Estamos preparados.” “Temos protocolos.” “Vamos encher este hospital de solução alcoólica.”


Depois, o silêncio. A espera pelo primeiro caso no nosso hospital, cuja chegada era inevitável. O medo, quando a realidade nos começou a chegar, em jeito de intuição. Primeiro, vinda de fora, em surdina, quando os colegas que receberam os primeiros suspeitos começaram a alertar para a ineficácia prática da chamada LAM - Linha de Apoio ao Médico. Depois, dentro de casa. Ao lado do sensor biométrico, o suporte para solução alcoólica que nunca a conteve. Os quatro dispensadores - todos vazios - atrás da segurança do corredor central. Ao que parece, usámos tanta solução alcoólica que a esgotámos antes que eu a visse.


Quando bateu à nossa porta, as coisas foram diferentes. Na verdade, fui mais eu que entrei de rompante, com a maior descontração do mundo, pelo serviço adentro para encontrar a primeira colega equipa com respirador. E depois todos os outros até ao fim do corredor. Assumi que se tratava de um doente entrado. Estava enganada. Foi um tiro pelas costas e nem o vimos chegar. Porque já estava lá dentro sem que nos déssemos conta. Uma pneumonia - um doente, não esqueçamos - internada a seis dias que passou a cumprir critérios para ser testada, porque a Direção Geral de Saúde os modificou. Um diagnóstico de pendor administrativo. Burocrático quase. Mas tardio e consequente. Dezenas de contactos desprotegidos, a maioria profissionais de saúde. Cadeiras de transmissão por clarificar. E a estupefação de quem está há semanas à espera de ver o tanque inimigo arrombar a porta da frente para depois compreender que o bicho escava túneis subterrâneos melhor que El Chapo Guzmán. E que não sabemos quantos já corrompeu desde que chegou.


Fomos todos testados. Mas, talvez em virtude do véu de estupefação e entorpecimento que tomou todo o serviço, muitas decisões estúpidas foram tomadas. Entre as quais, ausência de quarentena, mesmo para contactos directos. E indicação para continuar a trabalhar até ao eventual surgimento de sintomas. Como até as administrativas estavam munidas de respiradores, estes acabaram rapidamente e enquanto estas se queixavam do incómodo provocado pela máscara facial mais diferenciada, muitos de nós - potenciais infectados - observámos os nossos doentes - na mesma condição - munidos apenas de máscaras cirúrgicas. No fim dos dia, todos recebemos indicação para ir para casa - alguns fazemo-lo através dos transportes públicos em hora de ponta - sem aconselhamento de mais medidas de prevenção. E alguns - eu também - levámos máscara para casa e distanciámo-nos fisicamente das pessoas que nos são mais íntimas.


Mas o animalzinho ferido reage sempre, eventualmente. No fim da semana, reorganizámo-nos. Demais, caramba, que estávamos a receber praticamente um documento interno por hora. Os planos de reorganização do hospital foram sendo conhecidos. Nas pausas do café, como manda a etiqueta interna.. Aprendemos a colocar o Equipamento de Proteção Individual (sempre incompleto mas ainda assim). Os contactos directos entraram em quarentena. E a coisa pareceu voltar aos carris. Algumas horas antes da minha primeira noite na Urgência Central.


Costumo dizer que nunca nos podemos esquecer daquilo que ensinamos aos outros porque eventualmente vamos precisar dessas lições para nós. Na noite em que desemboquei pela 10 000ª vez no metro da Cidade Universitária e pus os olhinhos - enevoados, como sempre - sobre aquelas letras luminosas entrecortadas pelas árvores, lembrei-me do último sermão de Santo António que dei sobre o sítio onde trabalho:


- Sabes o que quer dizer hospital de fim de linha? Quer dizer que assumes toda a gente. Que não passas um problema - um doente - para outro hospital qualquer sem o orientares. Que enches os corredores de macas se for preciso mas que não recusas ninguém, não recusas tratamento a ninguém. Que trabalhas continuamente de braços abertos. Estas paredes velhas são o buraco último onde toda a gente se pode vir enfiar quando as coisas ficarem mesmo feias. E é exatamente aí que eu quero estar.


Duas coisas correram a minha cabeça em direções opostas quando passei a porta das Urgências: Cuidado com o que desejas. E oxalá as pessoas fiquem em casa; eu acabei de chegar à minha.


E estivemos bem naquela noite. Desde o cenário cinematográfico do enfermeiro de serviço a atirar fatos de bloco como se fossem pães quentes ao funcionamento bem oleado de uma equipa que, para já, vai aguentando a distensão aos poucos. Vi doentes “normais” e doentes suspeitos de COVID, coexistindo na mesma sala de aerossóis com a segurança relativa e possível, sob o tecto comum de precisarem todos de vigilância e cuidados respiratórios. A falta de equipamento é inegável. Mas as rotinas ainda se mantém. Juntámo-nos para comer e dividimo-nos para dormir. E celebrámos a rotina conscientes de que na próxima semana o mesmo luxo poderá não ser possível.


Vim para casa e entrei de férias. Pois, este é outro aspecto particular das minhas circunstâncias. Após um esforço logístico significativo para conseguir férias específicamente durante esta semana, o evento ao qual iria assistir foi cancelado e eu fui reembolsada. Mas as férias mantém-se, por agora. Como não pertenço a nenhuma das paredes que já discutimos, não esgotei o supermercado mas guardei o necessário para cumprir os meus quatro dias de isolamento voluntário / prontidão imediata. Obriguei o meu chefe a prometer que me telefonava se precisasse de mim nem que fosse para medir tensões. E apesar de me sentir horrivelmente culpada por gozar deles nesta hora, a verdade é que só os consegui porque garanti que me manteria ao trabalho sem mais férias até ao fim do estágio de Medicina Interna. Além de que duvido que a minha entidade patronal me vá agradecer que lhes ofereça 4 dias de trabalho gratuito. Sabe Deus que se o fizessem, provavelmente lhes daria 5.


Volto na Sexta-Feira, quando as coisas já estarão, certamente, bastante piores. Até lá, vou despachar outros projetos e decorar os protocolos que já temos como se fossem terapêutica de enfarte. E vamos mesmo ficar todos bem. Se não formos idiotas, claro. Tendo em conta o currículo da espécie humana, é melhor esperar para ver. De preferência, em casa.


(ACTUALIZAÇÃO)


Seguindo a tónica das precauções a tomar com os desejos que se fazem, acabo de receber um email com o apelativo título “Circular Informativa 03/2020 - Suspensão de Períodos de Férias”. Bem, foi um bom dia de férias. Esperemos que o próximo não tarde demasiado.

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