Deitar a horas
- thenutsbook
- 22 de mar. de 2020
- 4 min de leitura

Estamos todos bem mas no espaço de alguns dias, foi tudo dar uma volta ao bilhar grande. Grandíssimo.
Depois do primeiro doente e do pânico puro que me fez permanecer a dois metros dos meus nos dias que se seguiram, os testes negativos (embora incertos) ajudaram a que parecesse estar tudo calmo outra vez. Quase normal. No mundo das pessoas não-med, mais normal ainda. Eu que contava já com todos os serviços não essenciais encerrados, ainda recebi, naquela mesma manhã a chamada do relojoeiro a perguntar se podia passar lá por casa.
Já que a frase anterior deambula bebedamente entre a conotação potencialmente estranha e o século XVIII, deixem-me explicar-vos o quão literal eu estou a ser. Tenho um relógio de pêndulo de 2 metros de altura à entrada de casa. Os meus avós adoravam essas coisas. É gigante, barulhento e mal se consegue passar no corredor onde ele está mas eu adoro-o. Passei noites de insónia de Verão adolescente a fio a ouvir o concerto de quarto em quarto de hora, qual canção de embalar que dizia coisas como "aqui estás segura" e "amanhã é outro dia".
Pouco depois do meu avô morrer, partiu-se uma peça (em mim também) e o relógio calou-se. Durante anos. Havia outras prioridades, outras coisas em que pensar... e pouca vontade de ouvir música. Mas, quando fiz minha a casa que tinha sido deles, achei que tínhamos todos a obrigação de continuar a cantar e entrei na relojoaria. De acordo com o telefonema, o primeiro concerto era hoje. "Quando voltares, já está arranjado!" - disse a minha mãe na chamada seguinte e eu acreditei que quando voltasse para casa ia estar tudo normal.
Até que chegaram as notícias. As concretas, úteis, que entre as 3 newsletters diárias do Observador sobre COVID, as 232 circulares que o hospital nos envia diariamente e as 646 propostas sobre o que fazer em casa durante a quarentena - toda esta força trabalhadora que antes se queixava de não passar tempo em casa está agora a arrancar os cabelos, por alguma razão - começa a ser difícil chegar ao que importa. Se bem que a frase "temos um colega infetado" serviu perfeitamente para suspender tudo o resto. Era o primeiro. Ali ao lado. Mais ou menos à mesma distância que um dos meus doentes tinha estado do doente COVID positivo dele. O mesmo doente meu que agora estava febril e polipneico.
Claro. Que ingénua. Isto está apenas a começar. Mas a maioria de nós já tomou medidas dentro de portas. Que engraçado. Os colegas mais velhos nem falam sobre a possibilidade de serem infetados. Mas saíram de casa. Deixaram os filhos com os cônjuges, foram visitar os pais e os avós e disseram-lhes que não sabiam quando voltariam a estar juntos. Disseram "até já" como se fossem para a guerra. Ainda que agora estivessem refastelados nas cadeiras do gabinete, só com 2 doentes para ver e a enfermaria fechada até que cumpríssemos os 14 dias. O ataque aéreo podia vir de qualquer lado e não iria demorar muito.
"Vamos precisar de conversar", escrevi eu a medo.
"Não quero ir embora", respondeu ela a ler-me a mente, como de costume.
Desde há uma semana que ia tentando insinuar de mansinho que em breve me iria converter num factor de risco andante monumental. Um risco biológico, como diria outra colega, testada no dia a seguir a mim e que também se autoexilou da esfera parental. No fundo, tentei fazer a tempo e horas, aquilo que Itália fez há última da hora com já meio país de gatas: mandar a mãe para a terrinha.
Poupo-vos à imagem tonta das lágrimas por trás da máscara e da gasimetria recém-colhida no outro braço. Coisas que acontecem em famílias de duas pessoas. E que a ela lhe estavam a acontecer pela segunda vez, à sombra da memória inapagável de uns óculos de aviador em plena Guerra do Ultramar. Há velhos hábitos que ficam para sempre. Como a mala pronta em 10 minutos.
Despedi-mo-nos na estação de comboio, mal eu cheguei, para não fazermos figuras. Ela não saiu do carro. Não valia a pena, não nos podíamos tocar de qualquer forma. Acho que nunca mais voltarei a segurar um cotovelo com tanta força na vida. Nem quero voltar a fazê-lo. Mas admito que soube bem chegar a casa e não ter de colocar uma máscara, nem pensar em mim como um vírus com pernas.
"Limpa os sapatos!" O quê? A mensagem estava escrita numa letrinha que eu conhecia, num post-it colado ao jarrão da entrada. Obedeci e passei-os pelo tapete. Viro-me para fechar a porta e leio "Olá, linda."
Estão por todo o lado. Na cozinha, na sala, nos quartos. "Não te esqueças de levar almoço!". "Bebe água!" "Volto já!". E no sofá, mesmo em frente ao sofá onde ela sabe que eu "durmo" quando não consigo dormir pode ler-se "Deitar a horas". O que é justo e necessário considerando que nessa noite não dormi de todo.
Mas não o fiz sozinha. Ok, esperem, vamos andar para trás que isto parece outra coisa. O que quero dizer é que, quando a poeira assentou, quando os monstrinhos da minha cabeça se cansaram de tanto gritar e eu terminei o Excel com as minhas previsões particulares da trajetória do bicho, contava ouvir silêncio.
Em vez disso, ouvi "ding dong… ding dong... aqui estás segura… e amanhã é outro dia".
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