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Manual de uma emancipação: Belém

  • thenutsbook
  • 1 de abr. de 2020
  • 5 min de leitura

São 11h da noite e estou para aqui a fazer um bolo. Adoro bolos. Meu Deus. Se eu soubesse que ia começar a citar acidentalmente o Conan Osiris nem tinha pegado na caneta. Bem, tarde demais. Cozinho sempre que estou nervosa. E, tendo em conta que um dos sectores de Medicina foi rebaptizado de COVIDário (pareceria fofinho se não fosse aterrador), diria que tenho direito a um miminho. Ou vários.


Para mais, o refúgio do costume estava ocupado. Numa altura em que estamos todos proibidos de nos tocar e em que o único ombro no qual me posso encostar é o do meu urso de peluche, entrei na capela depois do trabalho, meio a modo de primeiros socorros. Lá dentro, está um homem a tossir qual tuberculoso do século XIX enquanto se benze sem parar. Hmm, se calhar é má ideia. Pronto, opção B. De Bolo.


Vamos dizer que é um trabalho em progresso. A minha relação com as entidades celestiais. Trabalho é mesmo a palavra exata porque acabo de chegar à conclusão que rascunhei páginas suficientes sobre a questão para fazer um livro de teologia alternativa. Orgânica e sem glúten, para ser mais sexy.


Quando era pequena (mas grande o suficiente para pensar nestas coisas), achava-me uma católica normal. Ia à catequese, missa aos Domingos… e Deus era um senhor de barbas bonzinho que andava sempre comigo, escondido na minha sombra, a espreitar cada passo meu. E eu nunca estaria sozinha. E de certa forma, ainda é assim.


Mas quando estava quase a terminar, desisti da catequese. Não foi uma decisão difícil. Senti que não estava a aprender nada, a acrescentar-me nada (por experiência prévia, sabia que Deus acrescentava sempre alguma coisa) e por isso saí. O que não deixa de ser uma justificação engraçada se considerarmos que, a ser legal o mesmo raciocínio no campo escolar, teria provavelmente desistido de metade das disciplinas do ensino básico.


A minha mãe não gostou mas não ofereceu o mínimo de resistência. E acho que isso foi importante. Acho que continuo católica porque em minha casa havia liberdade religiosa. Também fomos indo cada vez menos à missa. E aí a minha mãe acompanhou-me e entendeu-me melhor. Eu também me entendi melhor. Não era a matéria que era uma seca. Estávamos, isso sim, a ter péssimos professores.


E é neste preciso momento textual - com o bolo já a crescer no forno - em que começo a sentir-me culpada. Como se estivesse a pegar fogo ao meu porto de abrigo. Eu que sou a clássica pedinchona que vai a correr para o Altíssimo quando as coisas se põem feias. Entendam-me. Não é nada contra a empresa em si. Estou muito satisfeita com os serviços prestados… é mais uma carência de capacidades comunicativas por parte de alguns trabalhadores que distorce a mensagem e prejudica globalmente a imagem da marca. Estão a ver? Se Deus fosse a Google toda a gente me entendia.


Mas o produto tem de facto muita qualidade. De maneira que voltei à Igreja via grupo de jovens como quem começa a pagar o Premium depois de passar duas semanas com saudades do período experimental que já terminou. No meu caso foram bem mais do que duas semanas. Já era adolescente e tinha acabado de perder a minha avó. Eu bem disse que era uma pedinchona.


Correu tudo como era suposto, de início. Além dos novos amigos e da sensação de conforto de regressar a um sítio que sempre seria a minha casa, encontrei resposta para uma ou duas perguntas que me tinham chateado a cabeça ao longo do meu percurso. Crismei-me, pedi-Lhe desculpas, perdoei-Lhe e senti-me renovada. Mas não deixei de sentir que essa renovação tinha muito mais a ver com um processo interior pessoal do que com a comunidade em que continuava inserida. Normal. Eu e o Senhor lá de cima sempre fomos muito discretos quanto à nossa relação.


Também fiz as coisas à minha maneira. Faltei imensas vezes, ao ponto de telefonarem à minha mãe a perguntar o motivo e da pobre coitada ter de responder que se não me exigia uma hora para regressar a casa quando eu saía à noite, também não me iria exigir um motivo para eu não ir à Igreja. Sentei ao meu lado, na segunda fila mais à frente, a minha amiga bisexual e a namorada dela, para todo o mundo ver como elas eram bonitas. Posso confirmar que viram e que houve pares de olhinhos igualmente bonitos a cair no chão. Fiz consultas de planeamento familiar e distribui pílulas às mesmas colegas que acenavam com a cabeça quando nos contavam (contar é a palavra) porque é que não devíamos usar métodos contraceptivos.


Saí do grupo de jovens pela mesma razão que saíra da catequese - coincidência ou não - pouco tempo depois de me terem tentado convencer que uma mulher não devia divorciar-se ainda que sofresse de violência doméstica. Lá está, problemas de comunicação. Cristo morreu pelos pecados dos homens, mas ressuscitou. Não me parece que as centenas de mulheres que morrem cada ano pelos pecados dos homens tenham a mesma capacidade.


Mas claro, já quando cheguei a Paris comecei a sentir que a metamorfose da massa disforme e olheirenta que era a Pi pós-exame em qualquer coisa que se considera socialmente como um adulto (nossa senhora) implicaria um certo aumento da afluência às urgências celestiais. O que é hilariante considerando os tempos que vivemos agora e os tempos que vivíamos então, aqueles em que os Coronavírus tinham direito a apenas duas linhas da bibliografia recomendada nas infecções respiratórias frequentes das criancinhas. Bons tempos.


Piadas à parte, este momento estranho que se abateu sobre nós veio reforçar a teoria que fui construindo desde que deixei de fazer parte da comunidade activa da Igreja. A Fé é um dom e foi-me dado. Tive conversas maravilhosas com amigos ateus que gostavam de ter tido a mesma sorte. Porque a verdade é que ainda que tudo aquilo em que eu acredito seja mentira, eu nunca hei de saber. E até lá, terei caminhado toda a minha vida como se tivesse um guarda-costas musculado atrás de mim e uma bússola a minha frente. Terei caminhado com a certeza de que vou voltar a ver os sorrisos dos meus avós e de que eles estiveram lá quando terminei o curso, mesmo que eu não tenha visto.


Mas Deus, como todas as coisas boas que me foram acontecendo, tem de ser conquistado. É um gajo difícil, basicamente. Nem sempre o encontro na missa, também porque não páro lá muitas vezes. Mas quando o faço, escolho a igreja, o padre, e até o raio da cadeira onde me sento. (Porque é que não há um Tripadvisor para isto?) A Igreja, porque toda a gente sabe que o gajo difícil não vai passar muito tempo na mesma discoteca. Não quer deixar de ser novidade. O padre, porque isto continua a ser como uma empresa e convém evitar os operadores de call center incompetentes, se queremos o problema resolvido. E a cadeira, pelo mesmo motivo que o fazemos nos concertos. É tudo uma questão de acústica.


Em suma, a Pilar pequenina tinha razão. Deus anda mesmo escondido na minha sombra e acho que vou passar o resto da vida a persegui-lo, entre o que me ensinaram, o que oiço dizer e a minha própria noção de moral. Vou continuar a sentir-me estranha muitas vezes. É estranho, no país em que vivemos hoje, dizermos que somos contra o aborto. Como é estranho, no seio da Igreja que ainda temos em Portugal, dizermos que somos a favor do casamento homossexual, da adopção ou das barrigas de aluguer.


Mas conforma-me sentir que somos muitos. Pessoas que deram por si a encontrar Deus com mais facilidade por entre os corredores da vida do que entre as naves de uma igreja. E que se Ele é o caminho, talvez o encontremos assim. À beira da estrada, com os sapatos nas mãos como quem acaba de os gastar pela noite de Lisboa… e a pedir-nos boleia.

 
 
 

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