Quando sairmos disto, juro que
- thenutsbook
- 9 de abr. de 2020
- 4 min de leitura

Dia 2 de quarentena. E não é que não estamos mal? Admito que quando soube que o modelo das equipas em espelho ia chegar à minha enfermaria comecei por me sentir estranha. Ninguém gosta de ficar no banco a meio do jogo. Mas depois fiz as contas. Se me trancasse em casa na sexta à noite, teria os 14 dias cumpridos duas sextas-feiras depois. Dia 18. Se as coisas correrem bem, o Estado de Emergência termina no dia anterior. Assumindo que não há coronavírus no comboio deserto rumo à terrinha, pode ser que consiga passar 72h a menos de dois metros da minha mãe, pela primeira vez num mês e meio. Viva o confinamento!
Como dizia, para já estamos bem. Sobretudo, porque temos feito um esforço olímpico para nos esquecermos das circunstâncias. Com consequências perigosas. Aula de Cardio e Aula de Yoga. Aula de Suporte Ventilatório (para chegar ao fim da primeira) e Aula de Analgesia (para me conseguir levantar da cama no dia seguinte à segunda. E não é que a visão da minha pessoa associada a qualquer tipo de atividade física já não seja assustadora que chegue mas a situação é ainda mais grave. Em vez de fazer bolos, agora faço sopa. Só não estou internada porque o matulão da discoteca só deixa entrar quem tem o carimbo COVID.
Apesar de tudo, há coisas que continuam na mesma, para revestir a aberração da quinzena de isolamento de alguma normalidade. Metade das compras que deviam durar para duas semanas desapareceram em 3 dias. Pode haver sopinha mas também há chocolate. E arte. Muita! E acho que, neste sentido, os que a fazem merecem uma homenagem quase tão grande como a que nos tem sido feita a nós, profissionais de saúde. Porque convenhamos. Há histórias terríveis de colegas que veem doentes de alto risco com EPIs reutilizados. Colegas que não podem estar com as suas famílias, devido ao perigo que representam e que não têm onde ficar. Mas no meio das nossas histórias entrelaçadas e difíceis, também há momentos de sorte. E a minha verdade é que não têm faltado demasiadas coisas no meu serviço, estou numa enfermaria de limpos (até sustos em contrário) e vou ser paga para ficar em casa a fazer literalmente o que me apetecer durante 15 dias. De prevenção, é certo. Mas em casa. E enquanto aqui fico, há centenas de músicos, actores e humoristas a disponibilizarem livremente a sua arte nas plataformas online como quem atira pela janela dinheiro que já entrou em combustão espontânea. Dinheiro que me serve de oxigénio, numa altura em que estou a salvo de tudo menos da minha própria cabeça e me começo a perguntar se a empresa que fabrica os aspiradores dos Caça-Fantasmas faz entregas ao domicílio.
Enquanto essa opção não está disponível, vou navegando entre a Netflix, o Spotify e o Livro do Desassossego (para ir moderando os dois primeiros, que isto de ser millennial também chateia). Há bocado, choquei com uma canção em específico e fiquei parada nela até agora, como se de um semáforo avariado se tratasse. Antes de toda esta confusão rebentar, uma das artistas mais importantes da paisagem transfronteiriça lançou uma peça cujo enredo seria um fiasco para toda a gente que o abordasse menos para ela. A clássica história da rapariga desesperada à espera do namorado que está na prisão. Terrível, não é? Assim contado, parece o ponto de partida de uma novela da Globo. Mas não. Ela chama-se Rosalía e a música foi ponto de partida para um videoclip/obra de arte protagonizado por um dos atores da série Elite (é favor conter os suspiros) que em 2 meses tem 23 milhões de visualizações no Youtube. Bom o suficiente para estar a pavonear-se por entre os meus neurónios há horas. Sobretudo, pelo momento em que vivemos. Todos somos o rapaz bonitinho à espera de sair. Mas o que espera por nós cá fora?
Suponho que haja uns 7 biliões de maneiras diferentes de responder a essa pergunta. No meu caso, já há balõezinhos de fala aqui dentro, a formarem-se como nuvens, lembrando-me de tudo o que prometi:
- Esta ia ser a nossa oportunidade de ter um ano calmo, não era?
- Era, era! Tu ias deixar de ser tão poupada, eu ia deixar de me preocupar tanto. - respondeu a voz do outro lado do telefone.
- Acho que isto de “calma” não foi feito para nós.
- Não… mas não pode ficar tudo na mesma depois disto.
E claro que não podia. Essa foi a única certeza com que entrei em casa e tranquei a porta atrás de mim há 48h atrás. Já não sei quantas pessoas me perguntaram se acho que a nossa vida comum (e a de dentro também) se vai modificar quando o pesadelo terminar. Não sei se esperam algum tipo de resposta transcendente só porque trabalho num hospital. Na verdade, a doença nem sempre modifica as pessoas. Basta pensarmos no fumador que assim permanece depois de um enfarte. Mas respondo sempre que sim. Primeiro porque sofro de optimismo empedernido. E depois, porque não se tratou de um fenómeno individual. Trata-se - ainda - de uma questão de saúde pública que - temporariamente ou não - suspendeu de maneira quase absoluta toda a nossa vida colectiva, cujo tecido se mantém mais ou menos íntegro graças aos fios frágeis das redes sociais. Pelo que não sei de que maneira iremos modificar os nossos comportamentos no futuro, mas sei que temos obrigação moral de tentar fazê-lo. Obrigação moral de dar um sentido mais alto a todas as pessoas que vamos deixar para trás. Mais que não seja, para deitar a língua de fora à aleatoriedade inerente ao facto de que um conjunto de meia dúzia de moléculas marginalmente organizadas foi capaz de confinar às suas casinhas a mesma espécie que espetou um do seus na lua. Carregar com um bocadinho mais de força no botão que nos faz progredir todos os dias, seja de que maneira for. E depois, quando o Universo nos deixar, voltarmos a sair à rua e encararmo-nos uns aos outros. De preferência, algo melhores do que quando entrámos em casa e fechámos a porta atrás de nós.
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