Manual de uma emancipação: IC19 ft. COVID19
- thenutsbook
- 24 de abr. de 2020
- 5 min de leitura

O meu grupinho comunga de um mandamento não assumido: “não terás uma segunda noite no mesmo bar.” Muito menos na mesma discoteca. Nunca falámos nisto e, honestamente, não me admirava nada que nunca tivessem reparado no padrão… mas é recorrente. Chegámos a ter uma coisa chamada "Mapa dos Bares" que actualmente está em estado comatoso face aos eventos recentes e às nossas vidas de formigas cafeinadas. A ideia pode até, eventualmente, ter sido minha. Malditos genes de gato vadio.
Existe uma explicação, claro. Nunca fazemos melhor do que na primeira noite. É impossível. Tentámos, uma vez, há milhões de anos atrás, quando o Tamariz ainda não se assemelhava a um lar da terceira idade sob terapêutica hormonal de substituição. Passado uma hora já estávamos com vontade de mudar de poiso, mergulhadas na perfeita noção de despertença instintiva dos passaritos que sabem que foram aterrar no ninho errado. Mas já vamos voltar a isto.
Por agora e por falar em ninho, missão cumprida, señores. É Domingo e desde o conforto deste sofá, já mal me lembrava que há dois dois dias atrás, cumpridos os 14 de quarentena, me meti no segundo comboio da manhã para encontrar a minha mãe e o seu carrinho de compras industrial no parque de estacionamento de um Lidl a 120 Km de Lisboa. Tenho perfeita noção de que quase beijei o taxista que encurtou os 2 Km finais mas calculo que a gorjeta expresse a minha gratidão da mesma forma, ainda que algo menos memorável.
Não o fiz sem um certo sentimento de culpa. Apesar de todas as precauções, é mais que evidente que estou a fazer batota. Mas se é verdade que também temos de cuidar de nós mesmos para poder cuidar dos outros, estas 72h que estava a comprar eram o meu ventilador. Ainda assim, sentia-me uma fugitiva. Como naquele dia que deveria dar o mote para o último capítulo do meu conto pós-exame, que por acaso decidiu localizar-se temporalmente no seio de uma pandemia: quando fechei a porta da casa onde vivi quase sempre e corri a IC19 uma última vez. Devagarinho, com delicadeza e apenas com o estrondo estritamente necessário de não avisar previamente a parte (des)interessada.
Pensei bastante em Sintra nas últimas duas semanas. Convenhamos. Com tanto confinamento e ao meu débito cerebral normal, já dei umas quantas voltas ao globo. É um pensamento comparado, sobretudo. Já sei que não se comparam rapazes mas nunca ninguém me disse nada em relação a sítios e a verdade é que depois de 24 anos especada no mesmo, os primeiros dois meses na morada seguinte acabam por estar sujeitos a um certo filtro.
Um filtro muito favorecedor, neste caso, empurrado pelas queixas dos meus amigos sobre o tempo péssimo e pelo trânsito, na rádio todas as manhãs, com a sua balada de eterno amor àquele maravilhoso pedaço de estrada onde me senti tão feliz e tão miserável, consoante o sentido da viagem. Os comboios com metade da lotação (já antes do bicho, que agora não estamos para comparações). Os bancos e os serviços públicos com tempos de atendimento inferiores às duas horas, como acontece num lugarzito com infraestrutura e recursos humanos preparadíssimos para servir a densidade populacional do tempo em que se construiu a Pena mas inadequados ao meio milhãozito de pessoas que por ali andam actualmente, se incluirmos as áreas periféricas. Um inferno logístico de casas bonitas, verde até perder de vista e pôr-do-sol violeta.
Passei do oito ao oitenta, com escassos dias de intervalo. Ainda tenho noites más. O que é uma seca porque são muito menos românticas do que nos filmes, onde tudo é diversão e ressaca temporária. As minhas piores noites sempre foram as mais sóbrias. Autênticos Vietnames, de chegar a casa às 4h da manhã, pôr os Beatles no Spotify (enviando amor aos meus vizinhos, com a sua média de idades de 72) e deixá-los a mastigar o que quer que seja daquela vez. Mas agora são menos. Nunca mais tive vontade de passar a madrugada deitada no chão, sem mexer um músculo, na tentativa de que o meu cérebro acompanhasse a iniciativa.
E ultimamente há um certo vazio não há? Um nada. Lá fora - porque tudo me parece estar do lado de fora - vejo coisas que finalmente me fazem compreender como é que o mesmo povo que entra às 9h no trabalho mas só sai do café às 10h, consegue chegar à Índia se for preciso. Ainda que na semana seguinte volte a caminhar alegremente rumo à autosabotagem. Encontrei uma ternura nisso que em mim é quase doença autoimune. Também eu estou à espera de voltar ao normal. Por enquanto - cá dentro - o tal vazio. Vivo na minha varanda e fico a olhar para os gatos vadios, que sempre fizeram desta rua a sua ágora particular. Normal. Se a vizinha do prédio da frente me desse a exorbitância de comida que dá à sua prole improvisada, acho que também lhe deixava fazer-me festas. Pronto, não exageremos. A verdade é que fico aqui, a invejar-lhes a liberdade e o direito de assembleia. Vamos ficando mais perto, mas perto não é suficiente.
Por isso agora, aqui tão longe, nesta aldeiazita de população igual a 5, sei perfeitamente porque é que tenho uma lágrima teimosa a escapar-se ladeira facial abaixo. Falta-me aquele sentimento de discoteca por estrear. Parecido às passagens de ano. Das colunas de som a vibrar dentro do peito. De sensação de infinitude estúpida, braços no ar como se não os fosse colocar a responder a emails daqui a duas horas. É indescritivelmente ridículo verter uma lágrima em memória do Bar Desconhecido quando houve - e há, todos os dias - soldados conhecidos a cair definitivamente. Mas é - era - mais do que isso. Era a minha via rápida de reset. (A via lenta é pegar numa lata de tinta branca e pintar os muros desta casita. Tenho um homem das obras interior muito simpático, que aparece uma vez por ano e depois volta a dormir). Já não tenho reset que vá para além de uma folha em branco e uma farda lavada e em vez de brincos até aos pés, tenho uma cruz ao peito para não me esquecer da minha principal entidade empregadora.
“Mas estás aqui agora.”, vai balbuciando o único neurónio disponível, também ele estatelado no sofá. O mesmo que mantém essa frasezita na algibeira para usar sempre que os outros 3 ou 4 estão mobilizados em cima dos problemas que ainda não existem. E ele tem razão. Esperam-nos muitas saudades. De bares, de mar, de estrada, de eletricidade debaixo da pele. mas se calhar isso não é mau de todo. Não podemos estar toda a vida a perseguir a descida da montanha russa. E independentemente do tempo que demoremos nesta viagem inesperada, uma coisa tenho por certa: o caminho já não passa pela IC19.
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