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500 metros abaixo



Tenho para mim que há coisas que estão destinadas a correr mal e que, quando assim é, correrão mal independentemente do maior dos nossos esforços.


Comecei a intuí-lo com a D. Lourdes. A D. Lourdes é a vizinha mais antiga do nosso prédio. Comprou o apartamento em frente ao nosso, com o marido, ao mesmo tempo que os meus avós, algures nos anos 70.


Para dizer a verdade, nunca foram pessoas muito simpáticas. Da última vez que os vi, estavam ambos a berrar com a minha mãe. Era um dia e uma hora laboral e estavamos a fazer obras na cozinha que, naturalmente, faziam um barulho tremendo. Barulho que, pelos vistos, os incomodava de maneira incontornável e na presença do qual não estavam a conseguir almoçar (seja porque razão for).


A última vez que alguém naquele prédio berrou com um de nós levou um par de estalos. Isso devia ter servido de presságio. Mas a minha mãe tem o espanhol no sangue mais diluído que a minha avó e proferiu um diplomático “fique descansada, D. Lourdes, que não vai voltar a ouvir nada”, não sabendo que iria amaldiçoar estas palavras até hoje.


No mesmo dia, recebemos um bilhete debaixo da porta que nos autorizava, com infinita generosidade, a retomar os trabalhos, pois os senhores do castelo tinham dado por terminado o almoço. Mas o dia já estava perdido. Retomaríamos amanhã.


Retomámos, sem que a D. Loures pudesse ouvir seja o que fosse, já que o fizemos quase à mesma hora a que ela se terá lançado para atravessar a estrada atrás do prédio, fora da passadeira, como certamente fizera - tal como eu - milhares de vezes nos 30 anos anteriores. Desta vez não chegou à outra margem porque foi atropelada por um camião. Esteve em coma durante meses mas lá deu a volta. Confesso que não recordo a ordem dos acontecimentos mas, pouco tempo depois, perdeu o marido e passou a residir num lar. Sentindo uma pena tremenda pela senhora (eu própria teria a minha cruz equivalente meses mais tarde), agradeço a todos os santinhos que ninguém tenha ouvido aquela conversa. “Bruxa” seria a palavra mais carinhosa que nos teriam chamado.


Como disse, eu própria levaria com um camião bastante mais metafórico mas igualmente doloroso pouco tempo depois. Naquele ano, perdi o meu avô e, seis meses depois, dois homens acharam por bem partir a janela das traseiras e entrar em minha casa, pensando que estaria vazia. Mas estava lá eu. Que ainda tive tempo de ver os estilhaços no jardim e de avisar a minha mãe antes que os indivíduos, que pareciam mais assustados que eu, pudessem apontar-me as facas que tinham tirado da minha cozinha. É que nem tiveram a decência de trazer o seu próprio equipamento. Falta de material, cavalheiros.


Tal como a da D. Lourdes, esta era uma estrada destinada ao desastre. Por isso, a dona do Salão onde a minha mãe se encontrava, encarregada de ligar imediatamente para a polícia, deu-lhe o número errado. Enquanto aqueles senhores me roubavam, entre outras coisas, a última réstia de segurança que raras vezes senti naquela casa (da qual saí ao cair do primeiro ordenado); um operativo policial com 6 viaturas comparecia à porta de uma vivenda vazia, 2 quarteirões abaixo. Uns 500 metros. Así es la vida, señores. Uma lição que o estudo e exercício da medicina vieram gravar em mim a ferro, à força de helicópteros chamados a Évora que comparecem em Faro, de variações anatómicas imprevistas, de valores laboratoriais em que alguém não repara.


O azar e a sorte não são mais do que o equilibrio de forças que compõem a vontade de Deus ou do Universo. E quando a criatura quer alguma coisa, por mais inverosímel e errática a sucessão de acontecimentos que levem a tal resultado, ela acabará por cumprir-se; peça de dominó atrás de peça de dominó, como uma engrenagem mecânica que não pode ser travada. Como as asas da borboleta europeia que causa um tornado no pacífico. Como a mensagem que enviaste para o remetente errado e que já não consegues reverter, restando nada mais do que a impotência desesperada ao vê-la ser enviada, indiferente a todas as tuas súplicas.


E nesse momento, só nos resta uma escolha. Um dever moral para connosco próprios. Agarrar com força o volante e deslizar pela estrada que o Universo escolheu para nós, por mais acidentada que seja. Pode ser que a meta valha a pena.

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