Comecei a escrever esta edição enquanto entrava a pés juntos na quinzena mais ansiogénica dos últimos tempos. E notava-se. Espalhadas pela sala, provas por todo o lado. As moedas de chocolate, os pacotes de bolachas vazios, a taça de gelado. Na televisão, How I met your mother, pela milésima vez. Em loop. Yap, it’s anxiety town por estes lados e vai durar exatamente 14 dias. A duração exata do período de incubação. Os dias que me separam da escolha da especialidade. No meu horizonte mais imediato, uma estadia forçada em casa devido a um surto na USF para onde era suposto ter regressado depois da passagem por Saúde Pública, uma tentativa de isolamento profilático sob a forma de férias cada vez mais ameaçadas e o segundo aniversário seguido que acaba suprimido pelos contingências da carreira médica. E logo os 25. Que coisa deprimente.
Mas nem tudo é mau. Aquele pacote de pipocas, que jaz, literalmente devorado, na mesinha do café, estava óptimo, por exemplo. E este tempo tem sido bom. Não para enfrentar todas as questões psicológicas que me estão a devorar a cabeça há meses, nem a folha de preocupações que estaria rascunhada até à margem se o Word não deixasse tudo tão bonitinho, por maior que seja a confusão dos meus neurónios. Não; isso era o que eu devia ter feito, logo no início. Mas durante os primeiros dias, confesso que cedi. Optei pelo caminho fácil. Foquei-me em todas as tarefas burocráticas. Simples. E engoli o que neste momento me parece o meu peso em Hidratos de Carbono. Clássica estratégia de gestão de problemas de uma pessoa adulta e madura, naturalmente.
Mas está tudo bem. Esta é a minha última distração antes das contemplações de pessoa crescida começarem. O que é uma eleição de excelente qualidade porque a presente, em particular, é um parque de diversões de coisas giras e só medianamente sérias. E quem pode dar-se ao luxo de dispensar um pouco de entretenimento mundano que nos surge qual bóia salva-vidas por entre as ondas furiosas da maré pandémica? Exato.
Comfort Food
Se excluirmos os comboios, os cafés são provavelmente o meu sítio preferido para escrever. Aquele barulho de fundo maravilhoso é a mais recente conquista territorial da pandemia sobre a minha pessoa. Há 15 dias que não entro num café porque tirar a máscara fora de casa - ainda que a 2 metros de tudo o que respire - é um risco que já não sou capaz de correr. Mas encontrei algo que ajuda. Este site - cujo design relembra os primórdios da internet - recria aquela melodia maravilhosa, com o bónus de permitir adicionar chuva. Tragam a manta e as bolachas!
Claro que não sou só eu que estou a endoidecer!
Nos últimos meses, fui bombardeada com artigos sobre o tempo. Sobre o paradoxo que é 2020, um ano de transformações gigantes na nossa sociedade… e no qual parece que nada de relevante aconteceu. Quando todos os dias são iguais, até a sequência dos acontecimentos fica esborratada na nossa memória. E esta peça do NYT impõe-nos a todos uma certa compaixão.
Apesar de estarmos, de uma forma ou outra, confinados no espaço, há quem possa contornar a coisa de maneiras mais insólitas do que outras. Perante uma das maiores crises de sempre neste sector, algumas companhias áeras de países como o Japão ou a Austrália implementaram um projeto arriscado e começaram a oferecer (“oferecer” como quem diz incluir no catálogo de serviços, o preço destes pacotes é exorbitante) voos cénicos. Ou voos para lado nenhum, como são francamente chamados em algumas das promoções. Isso mesmo. Toda a experiência de chegar ao aeroporto, embarcar, descolar, passar umas 4 horas no ar… e aterrar no mesmo sítio. Dirigidos a pessoas com saudades de estar no ar, de ter algum sítio para ir, um destino. E sabem que mais? Alguns destes programas esgotam em 10 minutos, e a única coisa que sinto em relação a eles… é mesmo inveja.
Claro que depois, descobri a alternativa das pessoas normais. Aparentemente, a venda de partituras disparou 25% no Reino Unido, desde o início das restrições. Sou a única a pensar num versão caseira da Orquestra do Titanic?
Mirror on the wall
“Attention is the most basic form of love.”
Cruzei-me com esta logo no início da semana. Simples mas foi o suficiente para me desenterrar do lodo futurista onde tenho andado metida, afogando-me no que gostaria que fosse em vez de tentar nadar no que já é. (Falando no “É”, esta check list mudou a minha vida ou pelo menos a minha prespetiva sobre o que ela é).
Agora a sério. Nenhum aspecto do contexto que vivemos tem sido fácil para qualquer habitante do nosso mundinho. Nem mesmo para os que desvalorizam o desastre que agora atravessamos e que ainda o agravam difundindo ou pondo em prática as convicções infundadas que têm. Para alguns de nós, há simplesmente demasiada coisa a acontecer. De vez em quando, as ondas juntam-se e precisamente agora que o surf na Nazaré foi proibido, vejo uma gigante azul metafórica com o meu nome escrito, ainda lá ao fundo. Cada um recebe as ondas que o Universo lhe dá - e estamos todos a braços com uma bem grande - mas hoje comecei a ver a coisa de maneira distinta. Não sei se foi o açúcar todo que finalmente fez arrancar a bateria do meu cérebro, mas começo a achar que a minha onda é uma miragem. Ou um eco de qualquer coisa já surfada. Como aquelas ondas eletromagnéticas dos primórdios do Universo que só chegam até nós agora ainda que o momento temporal que lhe deu origem já tenha sido há muito ultrapassado.
Durante muito, muito tempo, levantei-me cada manhã como se vivesse para empurrar uma parede. (Lembram-se do anúncio da Caixa Geral de Depósitos em que as pessoas empurravam as paredes para “darem a volta” à crise? É essa a ideia.) Sentia-me esforço permanente. Mas agora? A parede já caiu há quase um ano e, apesar de tudo, dou por mim a pensar se não me tenho levantado com o mesmo espírito nos últimos tempos. Lembro-me daquela rapariga. De acordar cedo - levanta-te - descer as escadas no limite do coma - abre os olhos - de abrir a porta do escritório e acender as 6 luzes do tecto, para os cravar como flechas na parede física que tinha à sua frente. A Parede. Revestida de alto a baixo com apontamentos, prontos a serem percorridos pelo dedo indicador em riste no limite do cansaço e da frustração que viviam ali dentro muito antes daquela empresa ter começado. Aquele dedo que empurrava, sozinho materialmente, mas concentrando os esforços de todas as células da minha pessoa que berravam em uníssono: empurra!
Ainda tenho motivos legítimos para me sentir assim, de vez em quando. Paredes do a dia. Qualquer serviço público e a burocracia que lhe está associado é um bom exemplo. Mas a parede grande foi derrubada. Talvez surjam outras no futuro - surgirão certamente - mas além deste nevoeiro que se abateu sobre a nossa existência coletiva - e sobre o qual ainda havemos de falar bastante - não há nadinha para empurrar. Nem nada do que fugir. Já não estou em guerra com coisa nenhuma. Posso parar de correr. E prometo passar as últimas duas semanas a convencer-me disso.
Por fim, tempo para os anúncios. “1 minuto e 36 segundos” já está disponível em bookspot.pt e está semana houve tempo para uma entrevista e uma review bonitas até dizer chega. Da próxima vez que escrever uma destas o lodo do futuro já deve ter dado em mar. E quanto às ondas… cá estaremos.
Comments