Sento-me a escrever e sinto-me como se tivessem passado meses. Temos muito para pôr em dia não temos? Aliás, desculpar-me-ão se as minhas primeiras palavras não forem para quem me lê. Preciso de escrever primeiro para o meu avô. Nunca senti tanto a falta dele como na semana em que escolhi a especialidade. Da mão dele nas minhas costas. Da opinião lúcida seja sobre que coisa fosse. Da relação quase mística que mantinha com a sorte.
Nunca, nos maravilhosos 18 anos que passámos juntos, o meu avô me desejou outra coisa senão sorte. Não como as pessoas costumam desejar umas às outras, “Boa sorte” antes de um exame, de um encontro, de um jogo. Não. Era mais um “Boa sorte” nos aniversários, no Natal, em conversas normais. “Espero que tenhas sorte” foi sempre uma frase cá de casa.
Não sei se a visibilidade aí de cima é boa, no meio de toda a confusão em que estamos metidos aqui em baixo. Mas se a acústica não for má, gostava de lhe dizer que tivemos sorte. Que nos sobrou uma vaga da especialidade que queríamos, bem no centro de Lisboa. E que a lucidez dele amansou a minha alma desgraçada e me deu coragem para decidir escolhê-la às 5h da manhã do próprio dia, quando na véspera me deitei certinha de uma decisão bem diferente. Bem que me avisaram que as pessoas pensam coisas estúpidas antes de escolherem. Queria dizer-te que tinhas razão. A Deus pedimos apenas sorte. Porque tudo o resto está nas nossas mãos.
A foto
… fica só para mim. Na semana passada estive à conversa com o Núcleo de Estudantes de Psicologia, Ciências da Educação e Serviço Social da Universidade de Coimbra sobre o meu livro, uma conversa muito agradável que podem espreitar aqui. Mas claro, em tempos de pandemia, tudo é à distância e podemos preparar as nossas reuniões - e participar nelas embora eu não confirma nem desminta - em pijama. A minha mãe apanhou-me num desses instantes, com o telemóvel e bem desfocadinha como deve ser nestas situações. Mas adivinha-se o essencial. As trancinhas, a manta, o computador, o sorriso. “Meu Deus, nada mudou desde o tempo em que fazia exercícios de Matemática aos teus pés, pois não?” E isso assustou-me até certo ponto. Mas depois de ler esta entrevista do Paul McCartney mudei um bocadinho de perspetiva: “acho que é um facto da vida que as personalidades não mudam muito. Ao longo da tua vida, aí estás tu.” Aí estou sou eu. A trabalhar de pijama e a sorrir. Nada mau.
Sempre considerei a estabilidade do nosso caráter um sinal de resistência. De relativa impermeabilidade às tempestades que nos vão caindo em cima ou pelo menos, de solidez suficiente para as atravessarmos sem danos permanentes. O que me leva a outra notícia maravilhosa: foi encontrada uma coruja dentro do pinheiro que foi selecionado este ano para o Rockfeller Centre. Aparentemente, foi transportada com a árvore depois de cortada e já está a ser tratada num centro de preservação da vida animal.
O Filme
The best of Enemies foi o meu filme para pensar dos últimos tempos. É um filme bonito e importante em muitos sentidos mas encaixa perturbadoramente bem com o estado anímico da nossa sociedade. Por mais que procure, não consigo encontrar o link do ensaio que li sobre a coisa mas o termo “agressividade social” foi o diagnóstico que retive e que encaixa que nem uma luva. As redes sociais e a relativa impunidade que elas oferecem ajudaram a criar o fenómeno, claro, mas a pandemia agravou-o. Tornou-nos bebés birrentos, irritadiços, cansados. Com um limiar de tolerância pelo outro perigosamente baixo, numa altura em que a capacidade de empatizar é ironicamente mais necessária que nunca.
O Livro
Empatizar é um risco e a impermeabilidade, tal como falámos há bocado, tentadora. Mas quanto mais assustador é o presente, mais apostar no outro - e em nós - se torna um acto de coragem importante. Mudar de trabalho, comprar uma casa (este artigo fala disso mesmo, numa América em regeneração) são a valentia feita verbo). Valentia apoiada numa certeza reconfortante que todos os nossos livros de história encerram. De uma maneira ou de outra, já estivemos aqui antes. O livro que acabei de ler este mês, The Catcher in the Rye de J.D. Salinger deu-me todas as certezas que precisava para ser corajosa nos próximos tempos:
“Among other things, you’ll find that you’re not the first person who was ever confused and frightened and even sickened by human behavior. You’re by no means alone on that score, you’ll be excited and stimulated to know. Many, many men have been just as troubled morally and spiritually as you are right now. Happily, some of them kept records of their troubles. You’ll learn from them - if you want to. Just as someday, if you have something to offer, someone will learn from you. It’s a beautiful reciprocal arrangement. And it isn’t education. It 's history. It 's poetry.“
Pelo sim, pelo não, tenho mais uns quantos na lista.
A mensagem fofinha
Li esta semana outro artigo que já perdi entre as anotações. Qualquer coisa sobre a felicidade ser a diferença entre o que temos e o que consideramos suficiente. A todos os que me leram em 2020 e a todos os que compraram um bocadinho do que escrevi, desejo que 2021 vos traga bem mais do que o suficiente.
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