A Discoteca
- thenutsbook
- 10 de fev. de 2021
- 3 min de leitura

Acho que já vos contei sobre a primeira vez que dancei num covidário. Era a minha segunda noite ali dentro, o número de doentes era uma coisa minúscula em comparação com o que é agora e a situação parecia… gerível. E sei lá, eram duas da manhã, tinha colhido umas hemoculturas à primeira, estava bem disposta e embora me tivessem tirado a discoteca com a maior das facilidades, não podiam tirá-la de mim.
É essa imagem de resistência, de optimismo obstinado, que levo comigo quando vou entrar mais uma vez lá para dentro. Por estas alturas, vamos nos 10 000 casos por dia e não me parece que haja melhorias para breve. Mas procuro ignorar tudo isso quando me visto pela milésima vez. Tento pensar que cada doente que está ali dentro ignora se é o número 20 ou 5 000 daquele dia e que o medo que sente - chegam quase todos bastante assustados e quando não, a envolvência do espaço encarrega-se disso - é uma coisa bastante individual.
Bem, isto é mesmo como se fôssemos para a guerra.
É tal e qual. As pessoas iam para as trincheiras, nós vamos para um contentor. Mas é a mesma coisa.
Nunca estive na guerra mas ao ver-me sair de casa a minha mãe diz que sente o mesmo que sentia quando era o pai dela que via partir em plena Guerra do Ultramar. O perigo é outro mas a sensação deve ser parecida.
É a primeira noite de covidário do meu companheiro de combate. Agradeço mentalmente a Deus por ter escolhido uma diferente daquela, há meses atrás, como a minha primeira. Coitada de mim. Achava eu que estávamos no auge do combate com 3 doentes estáveis para vigiar. Achava eu que estava a jogar a final da Champions contra o Liverpool quando aquilo era mais o Campeonato de Portugal contra o Primeiro de Dezembro a jogar com 10. A Champions é agora, não sabemos bem se é a eliminar ou se ainda estamos na fase de grupos e aqui somos 5 (3 médicos + 2 enfermeiras) contra 25 doentes. Qual que, somos 30 contra um punhado de moléculas que nos estão a dar uma abada nesta e em milhares de outras trincheiras pelo país e pelo mundo.
Claro que quando estamos lá dentro, a metáfora do combate não é muito útil pois não? Já há tensão que chegue. Pesam os fatos, pesa o medo, a responsabilidade… e a tristeza proveniente da consciência da hecatombe que nos foi cair em cima. A todos como Humanidade.
Talvez por isso, nessa noite voltei a pegar na discoteca. Na minha cabeça e com os doentes.
A imaginação é uma coisa prodigiosa.
O espaço fechado e o calor de cortar a respiração nem precisam de explicações, pois não?
Saudades de contacto humano? Das pessoas sem noção de espaço pessoal? Não se preocupem, aqui não se trata de noção. É fisicamente impossível que não nos roçemos agressivamente em alguém até ao final do turno, ainda que seja um acidente. A distância mínima não é exatamente de dois metros. A máxima deve ser de 20 centímetros, ali naquele cantinho onde ainda consigo meter mais um doente se (quando) chegar, vier a pé. Se estiver em maca já vamos ter de improvisar.
A música. Oh, a música. Depois de anos a aturar o Drum & Bass que os meus amigos tanto idolatravam eis que os meus ouvidos se veem mergulhados numa batida igualmente rítmica mas feita de tosse aflitiva e monitores que apitam em desespero ao detectarem as baixas saturações de oxigénio que nós nos esfalfamos por reverter, tantas vezes sem sucesso.
Cartões de bebidas. Outro aspeto fundamental do qual já não tenho saudades. Folhas de papel dobradas em quadradinhos, várias ao longo da noite com um certo número de círculos para carimbar. Um certo? É para internar. Um traço? Já foi internado, saiu da lista, oxalá corra bem mas agora já não é comigo? Um A? Aguarda análises, exames, reavaliação. Um ponto de interrogação? Pois.
O estado dos convivas. Deixem-me começar por cair na tentação óbvia de dizer que ninguém entra sem a sua pulseira. Mas este nem sequer é o detalhe mais truculento. Também aqui muitas pessoas têm dificuldade em manter-se de pé. Muitas não sabem o que estão a dizer. Algumas vomitam. Algumas urinam-se. Algumas… penso que compreendem o resto.
Todas, como referi no início, estão mais ou menos assustadas. Por si ou pelos que deixaram em casa. Os exemplos que dei acima são tão ridículos como a capacidade que têm de pôr um sorriso ocasional na cara de quem me chega e que recebo como se acabasse de chegar a um bar e não a uma antecâmara de terror: "Oooora muuuuito boa noite, minha querida, como está? Bem vinda à discoteca mais concorrida do país! Estamos cá toooooda a noite e vamos tomar conta de si, não podia estar melhor entregue! Vamos já por um cheirinho de oxigénio, pode ser?"
Sempre tive mais jeito para dançar do que para combater.
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