A Peregrinação
- thenutsbook
- 5 de jun.
- 3 min de leitura
Se fosse obrigada a resumir a minha vida num minuto, 45 segundos seriam passados entre a Praça de Entrecampos e os Restauradores. Quando sou eu a conduzir, consigo passar relativamente ilesa por aquele trajeto esquivando quase todas as memórias lacrimogénicas. Mas o assento do pendura ou o frugal banco da Carris tramam-me sempre. Parece que estou no Sightseeing da Vida de Pi mas só eu é que conheço as paragens: a maternidade onde nasci, o Hard Rock Café e a meia noite dos 18 anos, o registo civil onde os meus pais assinaram o divórcio e o coreto onde esperei pela minha mãe, de Sommersby na mão, e vi a luz que vinha dela varrer a rua inteira. A clínica onde vivi o único susto de saúde que tive na vida. Palcos de alguns encontros bons. Palcos de demasiados francamente maus. Postes de eletricidade de escassos (mas épicos) atentados ao pudor e bom nome da via publica. O consulado onde ainda esta semana fui entregar os 299 papéis que é preciso para ter um cartão que diga que também sou daquele país onde o hino não tem letra. E o parque que para mim, nunca foi parque (até porque tem 3 árvores e meia). É só o sítio onde fica Feira do Livro.
Cruzo a entrada no primeiro dia e já são 12 anos de peregrinações consecutivas a esta espécie de Catedral. Também este sítio viu muito de mim. Viu não, exigiu lugar de personagem. Distraiu-me depois da primeira vez que ouvi a palavra "biópsia" e viu-me celebrar a negativa que ela trouxe. Abrigou-me, a mim e aos meus mais que tudo, em plena pandemia, quando uma editora pequenina aceitou publicar algumas das barbaridades que escrevi. Curou-me um ou dois ou três desgostos de amor ou de outra coisa qualquer. Tenho uma dívida de gratidão com estas bancas que me vai durar a vida inteira porque o crédito aumenta ano após ano e eu tenho boa memória.
Lamechices à parte, ao fim de tanto tempo, profissionalizei-me. Antes mesmo de que abra, passo os olhos pelos livros do dia, em todos os dias. Depois, assinalo aqueles que, de entre a minha lista, vão estar com desconto ao longo de todo o evento. A seguir, verifico quais foram publicados há mais de 18 meses e são elegíveis para o desconto da hora H. Finalmente, marco os stands onde estão os exemplares e aponto na agenda os dias e horas em que tenho de ir buscar cada um deles. Fácil. Nada de POC por aqui.
Paralelamente, estou prestes a cometer uma pequena loucura. Apercebi-me que não quero ser uma daquelas pessoas que compra livros que se acumulam em casa sem serem lidos e quando fui comprovar a gravidade do caso contei 45. Creio que me entendem. A ideia é lê-los todos - além dos que vou comprar aqui - até à próxima feira. Parece-me perfeitamente sensato.
Voltando às lamechices, a celebração alfacinha do livro é o cartão de visita mais representativo da cidade de que me consigo lembrar. O investimento na qualidade das infrastruturas e o marketing deste século transformou o que seria à partida um evento literário numa coisa cool. Sem abrir mão dos intelectuais de jornal de baixo do braço, abriu-se a todos os outros. Desta vez, vi executivos de phones nos ouvidos a comprarem livros infantis para os filhos ou edições de capa dura do Harry Potter que irão certamente fingir que são para eles. Vi turmas inteiras com os seus professores. Enxames de rapariguinhas de eyeliner até às têmporas que fagocitavam prateleiras de romances que lhes irão ensinar todos os sinónimos da palavra "desgosto" mas também que aquele que sentem não é único no mundo. Essa é uma das lições mais importantes que vive dentro de quase todos os livros. Não estamos sozinhos na bola de coisas que sentimos. Há sempre alguém com uma bola parecida.
Lisboa tem fitinhas e bandeirolas coloridas penduradas por todo o lado. Não é só a feira, são as festas da cidade, a única altura do ano em que se sacode a saudade com convicção e se celebra vá-se lá saber o quê. Ninguém quer saber. Estamos vivos. Celebremos. Compremos livros que vamos demorar a ler. E que para o ano haja mais. Valha-nos Santo António.
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