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Quebra-Nozes | 9# Analiticamente



Hoje foi um dia estranho. Daqueles dias de hiperreatividade em que reparamos em tudo o que não devemos. Analisamos tudo até ao mais ínfimo detalhe. E tiramos a piada a tudo em que pousamos os olhos.


Nessas escassas horas de consciência, tudo me pareceu surreal. Externo. Tropecei umas 30 vezes em todas as 30 pedras soltas da calçada no meu caminho. Uns metros à minha frente, um senhor tenta bater o record do número de vezes que se consegue utilizar a palavra "corno" numa única chamada telefónica. (Fiquei impressionada.)


No elevador, contei o número de pessoas que, ao entrar, inclina a cabeça instintivamente para baixo e quantas o fazem para cima.


E uma marca de produtos naturais exibe um anúncio no Instagram cujo slogan é "Obey your body". Ora o meu corpo está a mandar-me comer uma bola de Berlim. Devo obedecer-lhe?!


Ter estes dias - e pior - esta maneira de ser, pode ser chato, às vezes, mas tem algumas vantagens.


No meu 1º ano de escola, a minha professora primária ofereceu-me um presente (eu era esse tipo de aluna, no início). Daqueles mini livrinhos que se dão às crianças para elas começarem a ver figurinhas coloridas em papel. O meu chamava-se "O Livrinho da Felicidade" e enumerava, página após página, coisas pequenas do dia-a-dia que nos fazem felizes.


Parecendo que não, aquele montinho de papel - que ainda vive na minha mesinha de cabeceira como bíblia - foi uma lição importante. Saber retirar fascínio, entusiasmo, e até alegria genuína das banalidades que compõem uma parte signifiicativa da nossa existência é um recurso adaptativo de extrema utilidade, sobretudo quando a panorâmica geral do nosso mundo atravessa dias mais nublados.


Quando me sento no Nicola, ao fim da tarde, entre o espanto e o agradecimento por ter sobrevivido às últimas horas sem um traumatismo crânioencefálico, abro o caderno sem uma ideia definida. Mas peço um café e o empregado grita lá para dentro que é "um café a ser tirado ao maaaaaaais aaaaaalto níiiiiivel alí para a menina da última mesa. Depois paga-me a mim, está bem, querida?"


Oh, cidade de luz abençoada.


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