Passado um ano desta coisa grande que nos caiu em cima, choveram as fotografias dos profissionais - do ramo e da saúde - comemorando a efeméride. Pessoalmente, a coisa acertou-me de uma forma irónica. Criei uma pasta, dentro da de 2020 chamada "Vida Nova" logo no início de Janeiro… pouco depois fui obrigada a adicionar uma segunda, chamada "Quarentena". Contrariamente a todas as expectativas, foi um ano extraordinário, por tantas razões que couberam aqui e tantas outras que transbordariam o copo. Mas se me desse para resumir em imagens esse enorme calhau que se atravessou no meio da nossa imparável linha férrea comum, seriam estas:
1 - Primeiro Acto de Resistência.
A primeira coisa que a pandemia fez foi despir-me. Adeus, brincos compridos, fitas no cabelo, anéis, colares, pulseiras. Adeus, saltos altos. Olá, par de sapatos todo-o-terreno para ser o mesmo todos os dias. Depois, tapou-me a boca com uma máscara, com a qual cheguei a deitar-me na noite em que escrevi o texto que leva esse nome. O batom vermelho sobreviveu. Não o salvei, salvou-me ele a mim, ou ajudou nisso, levando através dele todos os pedaços de quem eu era, não fosse eu esquecer-me.
2 - Honra e Privilégio.
Quando o país fecha, quem tem de sair começa a ser apelidado de herói. Batem-nos palmas à janela, apetece-me chorar mas nada disso influi de forma nenhuma no decurso dos acontecimentos. Curiosamente, sinto-me com sorte. Todas as manhãs no percurso entre casa e o hospital... durante a viagem de comboio... Penso na minha família fechada em casa, nas minhas amigas que me enviam mensagens preocupadas desde as suas varandas. Deve haver menos de 1% da população com autorização para pisar este chão e ver este sol e eu faço parte desse grupo por desempenhar a profissão que escolhi. Os meus rendimentos não estão a ser afetados. Posso tomar café com os colegas no bar do hospital. Estou viva. Por enquanto, ainda estou viva.
3 - As chaves de Santa Maria.
Todo o banco noturno tem o seu cabo da boa esperança. O momento em que dobramos o banco é aquele instante mágico em que o trabalho abranda, os doentes deixam de chegar à mesma velocidade e os que estão connosco vão se deixando adormecer. os enfermeiros apagam as luzes. Reina a calma na Casa até ao amanhecer seguinte. Às vezes é às 2h, outras às 4h30. Mas de vez em quando, esse instante mágico e arrebatador como um suspiro apanhava-me por entre os corredores onde antes tinha aulas; a levar um doente à Tac ou a regressar depois de observar alguém na enfermaria. Nesse instante, entrava em mim - e ainda entra, em qualquer noite na minha nova casa, uma calma especial, ao assumir o papel oficioso de São Pedro ali do sítio. Ao fazer parte da engrenagem que se mantém acordada para velar pelo sonho dos outros.
4 - Arco-irís.
Esta não é minha. Recebi-a quando estava entre dois doentes, tirada pela minha mãe que, no seio do seu confinamento nos confins do Ribatejo, decidiu montar um estendal improvisado. Não sei se foram as saudades de casa, as cores, ou a luz daquela terra que é a luz mais bonita do mundo... mas regressei aqui, a este momento, uma e outra vez sempre que o ar aqui por dentro se tornou mais rarefeito. Melhor que Ventilan.
5 - Homeostase.
O início deste ano serviu-me para incorporar a pandemia no contínuo do meu percurso. Do nosso. Até então, tinha-me recusado vivamente a considerar isto mais do que uma pausa temporária nos destinos mundiais. Um evento isolado, uma falha da eletricidade, com princípio, meio e fim. A vaga do Natal despedaçou esse objetivo, mas também serviu para assumir a realidade e integrar este novo aspecto dela, já sem prazo limite. Imperfeita, Imprevista, Caótica. Como nós.
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