Sou acusada, com alguma frequência, de levar tudo a peito. Acusada, julgada e condenada. Por mim própria, primeiro. Porque é verdade. A bem dizer, não tenho outro sítio onde levar as coisas, que não seja no peito. Não tenho mais partes do corpo e, se tenho, nunca serviram para grande coisa. O meu cérebro, então, é um hamster, às voltas numa rodinha, que só serve para proletário: deixa as coisas feitas e cumpre prazos mas não o vou pôr como diretor de projetos. O meu cérebro é um fantástico trolha mas o peito é o arquiteto. Se calhar é por isso que acabo sempre a servir de psicóloga. As vidas dos meus amigos, as relações deles tornam-se quase objeto de estudo e, mais frequentemente, de admiração contínua do quão idiotas podemos chegar a ser, quando sentimos coisas.
Eu também. Como já se pode ter concluído, isto de ter o resto do corpo fagocitado pelo que se sente é bastante incapacitante. É muito fácil pensar que o mundo inteiro é aquilo. Há pouco tempo, li a história perfeita para ilustrar o quadro clínico. A de Sebastiana Navarrete (que nome estupendo), mãe de uma cantora sevilhana dos anos 30 que, durante a primeira atuação da filha em Nova Iorque foi avistada em plena rua, berrando com um vendedor de jornais (em castelhano, por isso sabemos que o homem percebia TUDO, claro) por ele não ter disponível o Heraldo de Andalucía.
Sentir coisas faz-nos isto. Nova Iorque tem de ter o jornal da aldeia ou então o jornaleiro é incompetente. Perdemos a perspetiva sobre o tamanho dos nossos sentimentos no cômputo geral da coisa. Ignoramos que podemos adorar alguém a quem essa adoração importa um pimento (em espanhol soa melhor).
E quando não somos nós que estamos a transbordar de arco-íris líquido, deixamos de ter consciência do impacto das nossas acções nos outros. Acontece o inverso. Importa-nos um pimento que alguém nos adore. Pior. Pode tornar-se um fardo, uma culpa, à imagem de como nos tornámos um fardo para outra pessoa no parágrafo anterior. Perdi a conta ao número de vezes que ignorei mensagens de alguém A enquanto esperava que alguém B parasse de ignorar as minhas. Somos girassóis em série, virados uns para os outros aleatoriamente. Linhas paralelas com demasiada frequência.
O aleatório é o meu detalhe preferido. O meu pote de ouro que faz o arco-irís. É que habitualmente não há GPS. Em tudo o resto sim, e nunca me falha. Mas aqui… sou e somos - porque sempre termino demasiado perto de gente igualmente avariada - barquinhos à deriva. Sou perfeitamente consciente de que tenho zero controlo sobre o tipo de gente que me cai bem ou não e ainda bem que à minha volta todos sofremos do mesmo mal ou acabaria por pensar que sou a única maluca. Isto é fácil de reconhecer quando gostamos de alguém e não sabemos porquê. Mas e quando é ao contrário?
Tive esta conversa um milhão de vezes. Posta a pessoa A em cima da nossa mesa, assim tipo soldadinho de chumbo cercado pelos nossos ameaçadores copos altos de conteúdo questionável, começamos sempre da mesma maneira. Há alguém que diz:
- Não me dou com ele, mas detesto-o.
Segue-se o:
- Ok, porque é que não gostamos dele? - Porque toda a gente sabe que os verdadeiros amigos odeiam em conjunto.
- Não sei. Nunca me fez nada, mas não consigo gostar dele e não tenho razão nenhuma mas não dá.
É fácil explicarmos o ódio com motivo. Aquelas pessoas miseráveis que assemelhamos à carraça d'"O Perfume" de Patrick Suskind, agarradas ao tronco de uma árvore, movidas apenas pela vontade de continuar a agarrar-se no dia seguinte, no minuto seguinte. Mas as pessoas que repugnamos desde o momento em que dizemos "Olá"... essas são mais difíceis de explicar. Passa-se o mesmo com quem importa de verdade. Pode haver motivos, mas diluem-se.
Da minha modesta experiência escapar de uma coisa que mais parece a sala de poções da fada má do Shrek passa muito por sair de nós próprios, já que é tudo a mesma coisa. Entender o peito dos outros também. Pô-lo à altura do nosso, para que o último não pareça tão grande nem o primeiro tão pequeno.
E deitar a língua de fora ao espelho, preferencialmente com companhia. Juntos, na mesa daquele bar onde esborrachamos os nossos ódios de estimação e construímos estátuas aos nossos amores que eles - com toda a probabilidade - não pediram e irão esborrachar na mesa do bar deles.
Aceitamos que estamos destinados a ter saudades e a ser objeto da saudade de outras pessoas. Peças de puzzle desencaixadas. Celebrando a nossa loucura, o nosso naufrágio, a nossa liberdade. No fundo, o juramento de fidelidade ao que nos devora por dentro. Porque sem peito não somos nada.
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