Claro que Itália ia dar pano para mangas. Ou letra para papel, talvez. Gosto de trabalhar, no geral, e adoro o meu trabalho, em concreto, motivo pelo qual não percorro os dias do calendário qual cavalo perseguindo a cenourinha das férias. Mas precisava destas. Precisava de pôr um vestido numa mochila e de gastar umas sabrinas. Tanto que quase empurro a lágrima de volta ao seu sítio ao ver estampado nos pássaros mais bonitos do mundo aquele que será para sempre o meu acrónimo preferido: TAP.
Não sei se a maioria dos europeus tem presente a sorte que é ter nascido neste pedaço do mundo mas tanto Roma como Milão são bons destinos para revalidar essa consciência e esse orgulho de pertencer, simultaneamente, ao berço e à vanguarda dos valores humanistas. E das suas paixões.
Mesmo nestas circunstâncias - e 10 anos depois da última visita - a botinha italiana continua a representar a overdose de coisas bonitas por metro quadrado. E resistiu bem à pandemia. Sobretudo Milão. Confesso que tive algum receio acerca do que iria encontrar numa das cidades mais afectadas. Do epicentro de onde vinham todos aqueles vídeos assustadores de colegas enfiados em fatos de astronautas, cercados de pacientes em enfermarias colapsadas.
Claro que encontrei muito menos gente do que seria “normal”. Mas também descobri uma rede de metro completamente forrada a setas e círculos para posicionar milimetricamente os passageiros e abracei com certo humor o ritual de me benzer com gel alcóolico em vez de com água benta.
E já que chegámos à água benta, passemos ao momento feminista do dia. 10 anos depois, continuamos a ser barradas - sim, barradas, na grande maioria no feminino, independentemente do que digam os cartazes - se pretendermos entrar numa igreja com os joelhos ou os ombros descobertos. Perdi a conta ao número de vezes em que tive de transformar o meu casaco numa espécie de extensão do vestido.
Vamos lá ver. Na semana em que o Papa decide dizer à imprensa que os prazeres da comida e do sexo só podem vir de Deus, eu tenho de tapar os joelhos náo vá a arrebatadora sensualidade da minha articulação fazer algum crente distrair-se da sua Avé-Maria. Tenhamos noção. Nós, Igreja. Não somos animais com impulsos incontroláveis. E longe vão os séculos em que a visualização de um tornozelo era causa de lipotímia. Espero que os meus filhos vivam num tempo em que um decote ou mesmo uma mama feminina já não o sejam. Não creio que quem nos fez tenha discriminado as diferentes partes do nosso corpo entre “limpas” e “promíscuas”, “aptas para exposição” e “ocultar a todo o custo”. E muito menos que tenha determinado que as mamas das mulheres sejam mais “indecentes” (o que é a decência?) que as dos homens.
Acima de tudo, quero entrar na casa Dele e sentir que a governanta não me barra a entrada (qual segurança de discoteca, mas isso era outra crónica) daquela que também é a minha casa (é a vantagem de se ser católico, temos um sítio onde nos sentirmos em casa mais ou menos em todo o lado). E que posso entrar, sentir-me confortável e rezar. Sabendo que todas as pessoas à minha volta estarão com toda a certeza a fazer o mesmo e não a contar os centímetros da minha roupa.
Uma nota engraçada: No meu segundo dia em Itália, provavelmente à mesma hora que eu montava um Project Runway improvisado à porta de uma igreja qualquer, a fim de conseguir entrar, cerca de 20 mulheres faziam topless no Museu d’Orsay - devidamente distanciadas e com máscara - e gritavam “isto não é obsceno”. Porquê? Dias antes, uma estudante de 22 anos foi impedida de entrar naquele espaço por ter “demasiado decote” e só o pôde fazer depois de vestir um casaco e apertá-lo até cima. Entretanto, o museu endereçou-lhe um pedido de desculpas. Fofos.
Não deixa de ser uma boa lição. Passo - provavelmente, passamos todos - os restantes dias do ano como que a empurrar uma parede que parece não se mexer. A dos nossos sonhos, dos nossos projetos mas também dos nossos problemas, grandes e pequenos, pessoais e sistémicos: entre o computador que não funciona, a funcionária que foi tomar café 5 minutos depois de começar a trabalhar e não ouve o telefone ou o desgraçado que acha que só se reza meeeesmo bem com um vestido até aos pés. “E no entanto, ela move-se.” Galileu é que sabia o segredo para a sanidade mental do correr dos dias (e para o fanatismo, já agora). A certeza inabalável de que ainda que não o consigamos ver a olho nu - e porque se passa à velocidade de caracol - a parede mexe-se. Fazemo-la mexer todos os dias. Avançamos. Reiniciamos o computador. Mostramos as mamas no museu d’Orsay. Como preferirem.
Ao regressar, sofro do mal do costume e centro o pensamento no objeto errado. Com o pé direito já dentro do avião, caio na tentação de pensar que todos as pedras do caminho estão à minha espera, em filinha - com o devido distanciamento - a segurar um cartaz com o meu nome como os motoristas dos transfers. Mas isso é irrelevante. A pergunta que eu deveria estar a fazer não é se o mundo ao qual regresso é o mesmo; mas sim se a pessoa que chega é a mesma que saiu de Lisboa. E é desejável que não seja. Viajar só tem sentido se acompanharmos os quilómetros de fora com uns passinhos por dentro. Se regressarmos com uma ou duas cartas na manga, que os calhaus que nos esperam ainda não conheçam. Só depois disso, sim, pomos o outro pé no avião. E começamos a sonhar com a próxima.
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