Lisboa, 9 de setembro de 2024
O táxi estacou à porta de casa precisamente às 6h59. Tinha medo deles em miúda, mas nos últimos anos, acabei por afeiçoar-me. Com alguma lógica (os afetos têm alguma lógica). Toda uma infância de “não fales com estranhos” seguida de uma adolescência de “cuidado com a internet” para chegar a uma contemporaneidade em que encomendamos estranhos que não falam connosco, pela internet, para nos darem boleia.
Fiz a chamada para a central no dia anterior e a voz simpática do costume atendeu-me com um ”Olá D. Pilar. Na morada de sempre e para o aeroporto? A que horas quer?”. Rendo-me. Num mundo de Ubers, quero ser a senhora dos táxis.
Este em particular era irresistível, pelo menos, no departamento da sonoplastia. Não ouvia Nat King Cole ao amanhecer desde os tempos da faculdade, o que só pode querer dizer que estou a perder qualidades. De repente, sinto-me em casa. Agora sim, vamos lá. “É para o aeroporto, sim. Partidas.”
***
Os aeroportos também podem ser casa. A de quem se sente sempre um bocadinho estrangeiro. E se o voo ou a pessoa que esperamos estiverem atrasados, não há melhor sítio para escrever. Nenhum lugar no mundo congrega maior densidade de histórias e até o observador mais despassarado pode deixar-se ficar a um canto, sossegar a mente um minuto, desprender-se da sua narrativa e evadir-se nas dos outros. Ponha-se-lhe uma caneta na mão e está feito. Matéria-prima de qualidade semelhante, só mesmo em hospitais. Mas nestes últimos as viagens são de outra natureza. Além de que, por alguma razão, não costumo propriamente ter tempo livre dentro deles. Vá-se lá saber porquê.
Hoje, também não terei tempo livre aqui. Nem chego a alcançar o guichê quando uma senhora de uniforme da Delta e olhos muito abertos nos seleciona para a “entrevista aleatória”. Urge-me saber os critérios de seleção dos entrevistadores. As perguntas são banais e padronizadas, como seria de esperar. Onde mora, o que faz, o que vai fazer a Nova Iorque. Quer ir ao MET? O que é o MET? A funcionária cujo trabalho inclui apurar a idoneidade das nossas intenções desconhece o significado da mais turística das respostas e isso, de alguma forma, causa-me ternura. O absurdo da situação não tem nada de americano mas, se tivesse mais de português, era pedra da calçada.
A partir daqui, mal tive tempo para saborear a minha cafeína de média manhã em condições. Não fui dispensada da segunda inspeção, aquela que nos põe ridiculamente descalços num cantinho nada discreto junto à porta de embarque mas quando dei por mim já estava de auscultadores nos ouvidos e pastilha de mentol na boca a pedir à hospedeira o meu café do meio-dia. Adeus, shots lisboetas; Olá, baldes americanos de água escura quentinha. Isto promete.
5th Av & 45h St, 10 de Setembro de 2024
Não acho que tenha escolhido uma altura particularmente agitada para vir até aqui porque duvido que este quadradinho entre rios tenha vivido um único dia livre de frémito, pelo menos, na sua história recente. Neste caso, tive a pontaria de acertar em plena Semana da Moda, chegar no dia do debate presidencial e ficar durante as escassas horas em que decorreram acontecimentos tão díspares como as celebrações do 11 de Setembro, os VMAs e a Assembleia Geral da ONU. Manhattan tem 59 km2 e 1 600 000 habitantes, fui verificar. Areias, a aldeia dos meus bisavós tem 40km2 e nela vivem 1500 pessoas.
Sentada na cama, à espera do debate, penso na nossa casinha, fechada, à espera. Na fruta do pomar que ficou por apanhar. Aquelas árvores existem ao mesmo tempo - algumas há mais tempo - do que estes arranha-céus e sabê-lo, saber-me num mundo com espaço e lugar para as duas coisas e para mim no meio delas é uma ideia que me deixa mais perplexa e fascinada do que a funcionária de ontem, confrontada com o exótico conceito de museu. Não é só o aeroporto. O mundo inteiro mereceria que andássemos todos de caneta na mão, calados e de olhos bem abertos. Talvez isso nos tornasse melhores pessoas.
Sobre o debate, é difícil escrever. Tanta tinta tonta será derramada por isto nos próximos dias, não sei se a minha estupefação plasmada em texto acrescenta alguma coisa.
Só sei que deviam ser umas dez da noite quando um dos candidatos ao cargo que ainda vamos considerando, embora cada vez menos, como o de líder do mundo livre, acusou uma comunidade emigrante de comer os cães e gatos da população residente. Ora aí está uma sequência de palavras que nunca pensei elencar, pelo menos, formando uma frase coerente. Mas o mundo em que vivemos é um desafio constante à imaginação e mais perigosamente, à própria coerência. Amadurecemos já, para além do optimismo ingénuo com que costumávamos, subestimadamente, encarar este tipo de figuras. E embora nada do que está a ser dito desde o início do debate seja uma surpresa desenquadrada de tudo o que já conhecíamos, nem tão pouco se possa dizer que não existe uma alternativa, a desolação que se instala cá dentro é inevitável e sai em bom inglês americano: is this all we got?
Lexington Ave & 43th St, 11 de Setembro de 2024
Ainda nem vamos a meio e esta viagem já está a alterar as definições de conceitos importantes na minha vida. Conceitos fundacionais. Como o de “bolacha”. O que na Europa se designa por “american cookie” é do tamanho de uma pepita de chocolate das deles e seria capaz de me alimentar durante um dia inteiro. Evidentemente, aqui o tamanho importa e a escala do king size aplica-se a tudo: edifícios, bolachas, café. Que maravilha.
É precisamente num café que estamos, a duas ruas da sede da ONU. Concretamente, a meio caminho numa filinha em que quatro ou cinco pessoas aguardam - aguardamos - a sua vez de pedir um copo grande do nosso combustível preferido. Paralela a nós, outra fila, para as recolhas. Há um polícia que espera por uma caixa de donuts - longa vida aos clichés que nos fazem sorrir - e deixa passar um senhor que se dirige à fila onde estou. O outro agradece-lhe e responde com uma frase que, hoje, vale por duas:
- Thank you for your service.
11 de Setembro. Nova Iorque. Era demasiado pequena na altura para entender a dimensão real das mudanças que aquele dia trouxe à maneira “ocidental” de encarar o mundo. Mas o que se lê nas caras de quem aqui passa, acaricia algum dos nomes gravados na fonte e deixa uma flor, desconhece o que é o tempo nem tão pouco precisa de tradução: o futuro pode sempre beneficiar da esperança no desconhecido. Mas ao passado, só lhe resta o amor.
E por falar em amor, no sentido lato da coisa, aquele gesto foi uma gota num oceano de cortesias amáveis a que assisti e de que fui alvo ao longo destes dias. Não sei se vou descobrir mais alguma semelhança entre mim e as pessoas que se passeiam mais do que uma semana por aqui, mas esta convicção é certamente comum: se tens alguma coisa simpática para dizer, por Deus, di-la. Di-la já, di-la logo, imediatamente, sem pré-aviso. A bondade à queima-roupa é um milagre deste mundo, está aqui à mão e, ocasionalmente, atinge alguém que está mesmo a precisar dela, a meio de um dia péssimo e com a autoestima no subsolo.
Hoje, essa não sou eu. Estou prestes a dar o primeiro golo num balde de café que recebi quentinho o suficiente para provocar queimaduras esofágicas e ao fim de 2 minutos à espera que arrefeça, não resisto a provar um bocadinho.
Mas não chego a provar coisa nenhuma. Os altifalantes trocam de música e eu reparo que eles estão a tocar pela primeira vez desde que entrei. Não, estou aqui, estou bem, esta canção agora não. Quem é que eu quero enganar? Foi esta, podiam ter sido outras 200. No segundo, seguinte uma lágrima do meu olho mais míope escapa do leito onde lhe compete ficar e desce pela cara abaixo ao mesmo tempo que o filme dos últimos meses se desenrola, frames em dominó, tijolos a cair por dentro. Pela primeira vez desde que cheguei, recordo que esta viagem foi sonhada por mais uma pessoa. Mas é também a última, ou pelo menos, comprometo-me com esse esforço. “Vá lá, Pilar. Lágrimas, aqui? A adolescência já foi há dois códigos postais atrás.” A frase a projetar-se dentro da minha cabeça, lembrou-me a minha avó. O software dela não vinha com a funcionalidade de demonstrar emoção negativa em público, esses eram privilégios de administrador. A opção de monolágrima só apareceu na atualização seguinte e a transmissão parece ser mitocondrial. De maneira que a dita cuja escorrega incólume até à mandíbula e vai morrer ao calor do balde preto que a espera logo abaixo.
Venha da minha cabeça ou do mesmíssimo céu, a voz tem razão. Já vivemos outra vida antes desta. Esperam-se coisas boas agora. E o café é uma delícia.
Central Park West & 77th St, 12 de Setembro de 2024
A primeira imagem do Museu de História Natural decepciona-me. A estátua do Presidente Roosevelt que aparecia nos filmes que adorava ver em miúda não aparece, por mais que eu a procure. No lugar dela, acabo por encontrar uma placa que confirma que, por agora, não enlouqueci: informa-se que a obra foi retirada por sugerir uma hierarquia racial. Bem, pela cor não há de ser, do que recordo tinham todos um bronze metálico impecável. O presidente estava a cavalo e os nativos a pé? Os senhores agentes da GNR, quando em cima de um cavalo, são racialmente superiores a mim? Devemos ignorar o nosso passado porque não nos identificamos com alguns dos valores subjacentes a essas épocas? Não sei se há café suficiente no mundo para alimentar esse debate nem se ele interessa verdadeiramente. Mas garanto que se não me dizem que há uma hierarquia, eu não a teria notado. Algo quererá dizer.
O museu é um tesouro não apenas pelo acervo, mas porque estas pessoas sabem dar espetáculo. A mise-en-scène é irrepreensível e há aqui tanto de história como de artes plásticas e paisagismo na recriação dos cenários de outras eras. Os macaquinhos são tão bonitinhos que parecem preparadíssimos para ganhar vida e resgatar o Roosevelt bronzeado da arrecadação onde agora exerce supremacia racial sobre o pó que está a ganhar.
- O meu sagui era assim.
- O teu macaco de estimação? Aquele que te mordeu?
- Não, esse era outro, eu tive vários. Mas não digas a ninguém. É daquelas coisas. Como eu ter tido uma criada, criança como eu, só para brincar comigo. Isso agora é mal visto, mas naquele tempo, em África, era tudo normal.
Às vezes esqueço-me que a minha mãe é um extraterrestre. Ou pelo menos, alguém que me ganha aos pontos em códigos postais e vidas passadas, algumas delas, em tempos e espaços que já não existem. A não ser aqui. Saguinus. Ali está ele. Aqui estamos nós. Aqui está a perna direita da autora dos meus dias, impresso na pele, feito cicatriz, o registo dentário deste bicho sorridente. A vida, senhoras e senhores.
5ht Ave & 82th St, 13 de Setembro de 2024
Devíamos ter começado pelo MET, não devíamos? Quando o dia termina, o meu telefone diz que andei 23 km. E eu acredito porque nos dias anteriores nunca andei menos de 20 e a extensão daquilo é infinita. Depois desta visita, fico convencida de que até a história se pode comprar, de certa forma. Num país com uma tão recente, é a nossa, europeia, que é comprada e trazida peça a peça, se for preciso. Dois anos depois de ter visitado a Catedral de Valladolid, viajo 5000 km e dou de caras com a grade do coro da mesma, datada do século XVIII e salva da destruição no século XX quando foi retirada no contexto de umas obras de modernização e incluída no acervo (certamente a troco de uma quantidade absurda de notas com rostos presidenciais). Somos o vasilhame dos norte-americanos. Até o que consideramos lixo é rentabilizável para eles.
Termino a visita com a sensação inquietante de que a Europa vive à custa da promoção do seu legado histórico e artístico enquanto as outras grandes potenciais procuram viver da construção e promoção de um futuro. Dentro do nosso mar azul de estrelitas, ainda vamos vivendo com o queixo erguido de nos sentirmos o baluarte dos melhores valores humanos. Mas aqui, o nosso passado é apenas lazer. Em 2009, quando a Grécia se tornou um embaraço com bandeira própria, perguntava-me como é que a nação-berço de palavras como “democracia” e “filosofia” podia ter-se reduzido ao que víamos nos telejornais. Não sei até que ponto não é a Europa toda que caminha agora nesse sentido, à medida que o que fomos deixa de ser sexy e vai restando apenas o que somos agora. Uma coisa é certa: não há imperativo moral de Kant que convença a senhora do supermercado a deixar-nos sair sem pagar a conta.
Regresso ao hotel sem precisar de mapa pela primeira vez. E aí é outro imperativo que me chama. Outra daquelas funcionalidades mitocondriais: quando passas duas vezes pela mesma rua, é altura de ir embora.
JFK Airport, 14 de Setembro de 2024
Fazer o percurso até ao metro pela Madison Avenue foi uma boa ideia. Deve haver alguma lei local que proíbe duas pessoas ao longo desta linha de se vestirem igual. Há lugar para tudo e quase tudo me parece bonito. Até (ou sobretudo) a senhora dos seus quase 70 que desfila à minha frente, embutida num vestido vermelho com o comprimento exato de escândalo + 1 cm. Não tenho lata para escrever que há uma voz na minha cabeça a pensar sobre isto. Sou eu mesma que penso qualquer coisa como “Senhor, vai-me acontecer o mesmo. Não vou ter discernimento para perceber quando é que já não fica bem vestir-me como me visto agora e vou andar pela vida, com esta idade, assim: parcialmente despida. O que pode, mais tarde, vir a ser problemático. Um dia, chegaremos ao ponto em que em vez da tanga, alguém poderá vislumbrar até à fralda para a incontinência.” Sim. Sem dúvida que sou eu.
Passo pela sede do New York Times antes de mergulhar no subterrâneo pela última vez. Ainda não sei que, daqui a uns dias, o jornal vai declarar oficialmente o apoio a Kamala Harris. Embora o editorial me tenha comovido - quase tudo me comove - a decisão parece-me um sinal-dos-tempos e, portanto, mais uma patetice. A opinião baseia-se em interpretações inteligentes dos factos. É legítimo e até recomendável abstermo-nos dela quando desconhecemos o tema em causa. Mas aqui e apenas aqui, a abstenção desapareceu. A opinião é universal e baseia-se agora, em boa parte, na interpretação - ou cópia direta - das opiniões com melhor estratégia de marketing. Estou convencida de que o bom jornalismo é o reduto último da pureza deste processo. A matéria-prima a partir da qual as pessoas que forem capazes de pensar - e as outras também mas quanto a isso não há remédio - constroem uma opinião. Trabalhos com a neutralidade monolítica e imaculada como o fact-checking que decorreu durante o debate, mais meritórios ainda pela dificuldade que têm em direto. Não acredito que tingir de parcialidade todos os trabalhos sérios, passados e futuros - de um dos maiores meios de comunicação do país vá contribuir para a derrota de Trump traduzindo-se em votos concretos, se não contribuir para agravar a desconfiança dos eleitores nos media. Mas teremos de esperar para ver.
Bebo o meu último café já no avião, antes de tentar dormir as 6 horas restantes até ao banco. “Extra large, please”. Disto, terei certamente saudades.
Comments