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Bala de Canhão




A Páscoa é uma coisa terrível para muitos católicos. Para mim também. Certo, ao Domingo acordamos para a vida - em memória de quem acreditamos que acordou mesmo - e revivemos com genuína alegria a história que é a base da nossa fé. Mas e chegar a Domingo? Para mim é horrível. Doloroso. À medida que nos aproximamos de sexta-feira percorro mentalmente cada passo prévio. Uma Via Sacra na cabeça.


Repete-se o processo todos os anos. Sempre a mesma coisa. O mesmo peso no peito umas semanas antes. A mesma pena. A mesma angústia durante toda aquela semana até chegarmos a Domingo. Pode parecer estranha a tristeza comum de centenas de pessoas por algo que teve lugar há literalmente dois mil anos. Mas esse sentimento, essa pena coletiva não assenta somente naquele momento estanque do tempo. Assenta em tudo o que ele representa. Em todas as penas do mundo de hoje, causadas pelas mesmas falhas humanas que culminaram na primeira Sexta-Feira Santa. As nossas falhas. Durante este tempo sentimos mais - embora o devêssemos fazer todo o ano - tudo o que está errado com a Humanidade. Todo o ódio, toda a inveja, toda a ganância, toda a indiferença. Reconhecemos o que delas há em nós.


Há uns meses li que a fé não evolui, ao contrário da ciência. Pessoalmente, acho que a fé evolui com as pessoas. Como as pessoas. Sobe, desce, muda de humores, esconde-se. Fecha-se no quarto quando recebe más notícias. Podemos correr atrás dela, podemos pedir-lhe que fique. Mas como qualquer pessoa, é uma bênção em si própria e pode decidir ir-se embora, se lhe apetecer. Quanto à ciência, prefiro reivindicá-la como carne para canhão. Combustível puro. Hachas naquela fogueira que arde cá dentro. Nunca houve progresso científico ou avanço tecnológico contemporâneo onde eu não fosse capaz de ver a força criadora que faz os girassóis voltarem-se para a luz. A mesma que levantou os homens do chão para que deles pudéssemos levantar arranha-céus. A mesma que desceu à terra como um de nós para que tanto tempo depois, celebrássemos esse gesto com o compromisso de continuarmos a tentar ser melhores. Não só porque somos católicos. Porque somos pessoas.

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