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Carpe Diem Cinzento | 2# Estado de Contingência. Tanto amor

  • thenutsbook
  • 22 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura




A primeira frase veio durante a madrugada, comigo dobrada em cima de uma mesa a tentar desemoldurar um quadro velhíssimo com um garfo. The usual stuff, portanto. Ou uma amostrinha dos esforços habituais no contexto daquele que, a seguir ao Natal é o evento mais trabalhoso do meu ano: o aniversário da minha mãe. É que a seguir ao desespero só pode vir a imaginação.


Felizmente, os preparativos da coisa ainda foram na época sub-200 - casos por dia - o que permitiu que o velho, velhíssimo ritual de dispor as prendas todas estilo manhã natalícia na noite anterior pudesse ser retomado depois daquele triste Dia da Mãe telemático (obrigada Whatsapp). Mas estava a exigir um pequeno esforço logístico prévio. Há já meses que a criaturita comentava que tínhamos de substituir o velho quadro das florzinhas azuis que estava na cozinha por aquela fotografia bonita que tirámos no dia do lançamento do livro. E a ideia era mesmo essa. Fazer a troca durante a noite, para ser a primeira surpresa do dia, com a óbvia consequência de ter de virar o bico ao prego - literalmente - à uma da manhã.


Como sempre, os meus amigos foram acompanhando os trabalhos via redes sociais. Mas este ano, mais do que nos anteriores - a pandemia tornou-nos molinhos e lamechas? - as mensagens choveram. E da última delas nasceu um rascunho de título. “Tanto amor.”


Cá em casa sempre fomos assim. Extravagantes como um casamento indiano, quando as circunstâncias nos deixaram e inventores de celebrações quando não parecia haver razões para festejar. Embrulhadores Profissionais de Pijamas quando não havia livros ou perfumes e Técnicas Superiores de Botânica Sustentável quando a mesada não dava para as flores. Tardes e tardes passadas a fazer ramos com todas as cores de cartolina imagináveis, que o tempo nunca conseguia fazer murchar, por mais que tentasse.


Tive um professor de Fisiologia que costumava dizer que até ao momento em que acordávamos e punhamos os pés no chão, já muita coisa no nosso organismo tinha corrido maravilhosamente bem naquele dia. E essa filosofia de celebrar o mundano parecia-me uma maneira relativamente simples de trazer um bocadinho de cor aos dias mais cinzentos. Mas nos últimos meses, veio a revelar-se mais do que isso. Porque a fatia do “Mundano” da tarte da vida (“tarte da vida”, patente pendente, aqui mesmo) rapidamente absorveu a quase totalidade da fatia do “Extraordinário”. O quotidiano cobriu-se de cinzento. De “meh”. Dei por mim a viver dentro de uma fotografia mal editada, onde as cores são menos vibrantes e a luminosidade é péssima. Ou numa daquelas cidades dos filmes para crianças, amaldiçoadas pela bruxa má e lançadas sobre um manto de inverno pastel. E tal como no filme, não sei quanto tempo o feitiço irá durar.


Eventualmente, tive de habituar-me a esta sensação de estar mais desbotada que uma pedra da calçada. Em muitos sentidos, somos como pedras da estrada em plena intempérie. Porosas, sujeitas à erosão dos elementos, ao desgaste. Agora mais do que nunca, transformarmos o dia-a-dia num desfile é pôr cimento por entre as fendas. É recuperarmos um bocadinho da substância perdida. Revestir-mo-nos, ainda que temporariamente, de alguma impermeabilidade, que nos vai tornando menos susceptíveis às agressões inevitáveis. Definitivamente, sinto que o Universo só nos deu duas hipóteses: tornarmo-nos todos uns amargados antes dos 30 ou fazermos de cada ciclo cardíaco uma festa. Quem me dera que todos os dilemas fossem assim tão fáceis de responder.


 
 
 

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