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Carpe Diem Cinzento | 3# Estado de Calamidade. Vai-se andando

  • thenutsbook
  • 29 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura



A segunda ideia veio de um momento “aquário”. Estávamos a almoçar numa daquelas mesinhas que dão para a rua através de uma parede de vidro. Uma versão urbana de Oceanário, com o protagonismo completamente entregue à nossa espécie preferida.


- Porque é que estás triste?


- Lisboa está cinzenta.


Ela tinha razão. A razão pela qual eu não o vira sozinha antes é complicada de explicar. O modo de ser português pode ser bastante cinzento para quem se sente um observador externo. Entendam-me. A palavra nacional aqui é “saudade”. O maior símbolo semântico nacional é um nome que representa uma ausência, algo que falta. E “vai-se andando” é a frase predileta para responder à pergunta “como está”. Como se a condição de ser portuguès viesse amarrada a um perpétuo estado de sobrevivência.


Globalmente, todas as nações recuaram “degraus” de bem estar durante a pandemia. Razão pela qual esta semana li um artigo no “El País” intitulado “Pero bueno…” que é a expressão em castelhano que mais se aproxima de “vai-se andando”. Espanha está mergulhada num “pero bueno” que para nós é tão atípico que merece um artigo no jornal mais importante da nação. Mas Portugal já aqui estava, por razões que derivam da sua própria cultura, da sua própria identidade. E agora?


A sobrevivência perdeu o seu horizonte e contrariamente ao que possamos pensar, não creio que seja a primeira vez que o faz. Apenas a primeira de forma tão abrupta. A pandemia fez-nos esquecer que somos a primeira geração que irá cair em qualidade de vida face à que lhe antecedeu. Aquela que foi empurrada para o ensino superior com a promessa da garantia de um futuro que se derreteu em cascata de expectativas defraudadas. Aconteceu o oposto: agora até o trabalhador da caixa de supermercado tem de ter uma licenciatura mas não recebe mais nem melhor que o mesmo trabalhador que fazia o mesmo trabalho há 15 anos atrás. Quem gosta de um caminho “diferente”, (e o persegue porque ser infeliz já não rende muito mais) navega entre uma formação profissional esburacada e a inexistência de apoios para começar o que quer que seja. Passámos de ver o horizonte no canudo a vê-lo através dele. E viramo-nos para os nossos pais e perguntamo-nos o que é que eles fizeram. E provavelmente, nem eles sabem. Mas esse era um processo individual que operava silenciosamente no coletivo social. E claro, podíamos ir andando.


Só que agora o combate não se faz colocando um pé à frente do outro mas antes cedendo território. E isso é algo que fazemos com dificuldade. Numa destas manhãs chuvosas de comboio semicheio, assisti à discussão de duas senhoras que se pegaram à minha frente, por causa do distanciamento social, quando a primeira tentou impedir a segunda de se sentar ao lado dela. De início foi só isto. O medo é inversamente proporcional à compaixão, como sabemos. Mas depois alguém se lembrou que a segunda senhora era negra e atirou o clássico mas felizmente moribundo “eu não sou racista, até trabalho com eles!” Ah sim, além da pandemia, coisas como esta ainda cá estão, só cairam na lista de prioridades. Cedemos no que não devíamos; mantivemos uma física distância de segurança mas alcançámos um grau de distanciamento emocional que nos coloca em risco noutras dimensões não menos importantes da nossa saúde. Não admira que as minhas extravagâncias festivas do capítulo anterior tivessem causado tanta estranheza. Em tempos em que o ódio e a desconfiança são espectáculo público, o amor deixa de ser o quotidiano e torna-se todo um evento.


Como li, no outro dia, o desgaste vai-se acumulando pesadamente sobre os ombros e conduz o ser humano ao abandono. Lisboa já não vai andando. Arrasta-se. Atordoada. Comatosa. E eu olho para ela através do vidro da pastelaria, do lado de fora também por uma questão de personalidade mas neste momento, sobretudo, por pura sorte. E não tenho coragem de lhe dizer que já lhe conheci dias piores. É mentira. Sei que já os viveu mas não estava cá para os ver. Não a reconheço e a convicção de que sairá do buraco é meramente teórica, vinda das crónicas das crises passadas nos meus livros de história. Vinda da esperança que esta se vá juntar a elas, um dia, como uma das muitas narrativas cheias de erros com os quais nunca parecemos aprender o suficiente. Mas antes disso e como já suspeitávamos naquela manhã de Outubro, ainda iríamos escorregar mais alguns degraus… pero bueno.

 
 
 

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