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Carpe Diem Cinzento | 4# Estado de Emergência. E uma camisola da seleção no meio de um tsunami




O despertador acordou-me como um raio. Ou quase. O que me fez saltar da cama como um animal assustado foi o SMS que apareceu no ecrã. Era da minha tutora. Aquele primeiro caso de COVID19 identificado na USF durante as minhas semanas na Saúde Pública já tinha deixado um rasto de pelo menos 3 vítimas e toda a equipa teria de ser testada. Quanto a mim, ficava em casa até novas instruções. Fantástico.


O que é apenas parcialmente irónico. A verdade é que já acabei todos os estágios do Ano Comum que poderiam verdadeiramente interessar-me, o que significa que neste momento estou a agonizar lentamente num trabalho do qual eu não gosto (independentemente da importância que tem) à espera de fazer a minha escolha e receber o papelito que me dá autorização governamental para seguir com a minha vida. Assim que uma mensagem que significa que posso ficar em casa a escrever em vez de ter de ir cumprir mais um dia de comissão de serviço (onde sou perfeitamente inútil mas lá chegaremos) seria - não fosse o motivo da minha libertação temporária a doença de outros - nada menos que uma benção dos céus.


Mas nem ela - enquanto durou - veio apaziguar a minha sensação de deslocalização. Não só em relação a mim, mas em relação ao comportamento de todos os pedacinhos da sociedade no momento em que vivemos. De alguma maneira, sinto que estamos todos no sítio errado, a fazer a coisa errada. E nem sequer estou a falar apenas dos setores negacionistas da sociedade a quem pusemos este bonito nome porque agora é considerada falta de educação designá-los pelo que são: malucos perigosos.


Acho que já me sentia assim há bastante tempo, mas só consegui dar nome a esta estranheza ontem. Terminei uma conversa com a sensação de que ao longo do meu primeiro ano de trabalho terei aprendido muito sobre o funcionamento operacional de um grande hospital de Lisboa (conhecimento provavelmente inútil na sua quase totalidade em qualquer outra instituição de saúde porque os procedimentos logísticos tendem a ser altamente próprios e variáveis) mas quase nada sobre Medicina. E isto não aconteceu por causa da pandemia.


Aconteceu porque a distribuição dos recursos humanos e a elaboração de políticas em saúde carece cronicamente de uma visão estratégica. Internos como eu são colocados a fazer os trabalhos que não requerem grande diferenciação (tapando buracos, em vernáculo) para que os mais velhos (supostamente mais experientes, já que, pelo menos, já levaram com um ano de "secretária" em cima) possam ocupar-se do resto. Este é o pacote básico. Fazemos notas de entrada, notas de alta, histórias clínicas, falamos com as famílias. Tudo o que um aluno de 6o ano já sabe fazer, repetido à exaustão. Num hospital como o meu ainda fazemos outras tarefas extremamente médicas: tiramos sangues, levamo-los ao laboratório vamos buscar relatórios que apenas existem em formato físico à outra ponta do edifício… supostamente existem técnicos de análises e estafetas para estas coisas… mas são um pouco como aquelas criaturas maravilhosas que os documentários da BBC mostram: temos de ficar muito quietinhos no mesmo sítio e durante muito tempo para ver se avistamos algum.


No centro de saúde, depende. O facto de não gostar de MGF faz com que me torne na pessoa errada para discutir a qualidade daquele estágio mas a pandemia veio dificultar até a vida dos colegas que gostam da especialidade: muitos estão em centros de saúde a operar quase exclusivamente por teleconsulta… utilizando telefones sem altavoz. Tudo o que conseguem ouvir são as perguntas do tutor. E mesmo nos centros que mantém atividade presencial, enquanto os telejornais fazem eco das dificuldades dos hospitais em contratar novos médicos e enfermeiros, existem trabalhadores afetos a estes centros que estão limitados a medir perímetros abdominais, pesos e tensões.


Tenho de confessar a ambiguidade que isto me provoca. É claro que, como qualquer ser humano com o mínimo sentido de autopreservação, prefiro estar minimamente protegida do que estar na linha diferente. Não vivo sozinha e o peso das consequências representa um risco que estou mais do que grata em não correr. Mas é uma benção acompanhada de um sentimento de uma culpa que não é minha ao ver colegas de “recruta” marcharem para a linha da frente enquanto alguns afortunados como eu ficam para trás, sem a justificação válida de que a aprendizagem do presente os vá tornar melhores profissionais no futuro.


Enquanto isso, amigos e colegas vão inundando a Acta Médica Portuguesa com trabalhos sobre a pandemia: as estatísticas, a reorganização dos espaços, a avaliação de impacto, as lições para o futuro… porque com o instalar da segunda vaga pudemos todos compreender com que afinco terão os órgãos de governo estudado todas as publicações que saíram durante a primeira.


Por falar em governo. A deslocação número 3. Com o decretar do estado de emergência instalou-se por fim a consciência geral de que a tutela parece mais preocupada em assegurar a sua própria salvaguarda jurídica no que diz respeito à legitimidade legal das medidas que toma do que propriamente a eficácia das mesmas.


Resumindo, pareço - parecemos, acho eu - baratas tontas. O rumo e a razão mais enevoados que ontem.


Quando tudo isto começou cheguei a falar da minha persistência em usar batom por debaixo da máscara. Entretanto, alguém me recordou que o batom foi o único produto de cosmética que Winston Churchill poupou ao racionamento, durante a II Guerra Mundial, porque acreditava que a coisa tinha um efeito positivo na moral da população. Por um lado, não diria melhor. Por outro, é uma boa lição para as duas partes. Para quem toma as decisões, porque quem adere às medidas também precisa de qualquer coisa que lhes dê esperança para além de obrigações. E para quem as cumpre, porque o patriotismo e o humanismo também se demonstram fora dos campos de futebol. Fora do hino e do "say no to racism". Se há terreno para sermos patrióticos e humanos, esse terreno é o dia-a-dia, como nunca foi antes.


Quando o meu batom vermelho falha - coisa raríssima e deus nos livre de semelhante hecatombe, amén - tenho sempre a mesma imagem de recurso na cabeça: lembram-se daquele miúdo de 7 anos que sobreviveu ao Tsunami de 2005, na Indonésia? Por cá, os jornalistas enlouqueceram. Não porque ele foi encontrado 21 dias no meio daquilo que sobrou de Samatra. Mas porque tinha uma camisola da seleção portuguesa. Lembro-me daquele miúdo cada vez que estou assustada, portanto quase todos os dias do último ano.


Descobriram-no sozinho, sem saber se a família estava viva, completamente desorientado, mas vivo. Por alguma razão, aquela coisa pequenina aguentou-se. E nós temos de fazer o mesmo. Porque ainda nos sobram razões, sejam elas quais forem. Em última instância, sobra-nos a mais importante de todas. A dele. Porque sim, caraças. Porque sim.

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