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Crónica de uma despenteada



Tenho um vinco no cabelo. Parece uma maneira algo contundente de começar um monólogo mas a verdade é que depois de perder 40 minutos da última noite a transformar o fardo de palha que me cobre a cabeça num lençol de cetim, a verdade é que devo ter adormecido numa qualquer posição estranha de modo que esta manhã disponho de uma antena no topo da cabeça capaz de emitir sinais para Marte. Se isto não é um acto de guerra por parte da ordem universal, então não sei. E não termina aqui porque quando apanho o elevador no piso 0, rumo ao 8, sou travada em seco logo no 1. Pelo segurança:


“Ó Dra, bom dia, como está? Desculpe mas vai ter de sair. Temos um COVID a passar. Do 1º para o 8º andar a pé, por causa de um conjunto marginalmente organizado de ácidos nucleicos e proteínas. O horror. O ultraje. Ainda por cima… já vos contei que tenho um vinco no cabelo que se recusa a desaparecer?


E agora toca o telefone, estando eu em plena prova de esforço, escada acima. Tenho vergonha em admitir isto mas nos últimos meses, sinto receio sempre que o telefone toca. Tento empurrar o sentimento de “o que é que aconteceu desta vez” que é quase imediato, mas admitamos que não têm sido uns dias - semanas e meses - calmos para ninguém.


- Acho que vou comprar uma Bimby. - leio com estupefação. Que acham?


Graças a Deus. Costumava abominar conversa mundana mas confesso que o aborrecido tem a sua segurança, que conforta um bocadinho em tempos peculiares.


Mas só um bocadinho. Na verdade, a conversa da Bimby começa a parecer-me mais inquietante do que mundana. É a terceira mensagem que recebo este mês sobre as bondades da “panela com rotador”, como definiu com maestria um dos colegas que comunga do meu cepticismo.


Foi acontecendo aos poucos. Eu já estava avisada e fui ignorando. Mas começa a ser impossível. Até há bem pouco tempo, as solicitações mundanas das minhas amizades eram para diagnóstico diferencial nas grandes questões da vida: Compro esta T-Shirt ou esta camisa? Italiano ou chinês? Este rapaz é envergonhado ou só ótário? O essencial, portanto. Agora, recebo mensagens sobre a Bimby (iria jurar que no outro dia me adicionaram a um grupo que organiza demonstrações) e fotografias de pão feito em casa… e os meus companheiros de farra autoimpõem-se horários de recolher obrigatório mais rígidos do que os seus pais lhes impunham, quando estudávamos.


Durante muito tempo, fui a estranha por andar um passo à frente da generalidade do meu entorno. De repente, os papéis inverteram-se e quem parece andar atrás sou eu. Mas será que é suposto? É que se essa é uma unidade curricular obrigatória, acho que quero mudar de curso. Sobretudo agora. Agora que as circunstâncias me fizeram descobrir que o mundo pode parecer enorme e ter 120 km de comprimento ou a distância de um antebraço. Entre o longe e o perto. O poder sair de casa e o confinamento ao hospital. Há quase seis meses que sou adulta, para todos os efeitos da coisa. Mas mais do que nunca, quero o mesmo que queria quando tinha 18 anos. Um carro com o depósito cheio, uma tripulação e um sítio para onde ir. E se o mundo é pequeno, então darei passos pequenos. Perder-me-ei em pessoas que são cidades, com jardins cheios de flores e recantos mal iluminados. Dar-me-hei conta, como dou sempre quando estou a caminho de todas as coisas e de coisa nenhuma, que me vou dirigindo irremediavelmente, magneticamente, para o lugar onde comecei, porque o levo dentro. Incurável. Irredutível. A eterna viagem de fora que termina sempre cá dentro. Isso sim é conforto. Como a bisavó María (com acento, se faz favor), trazida da província espanhola para os Açores, quando viu o mar pela primeira vez. Quase 2000 Km percorridos para encarar aquela massa imensa de água e dizer "ai querida, e se isto fosse tudo azeite?"


Por entre as janelas do piso 8 - finalmente cheguei - espreito o meu reflexo. O vinco no cabelo lá continua.


Meh, até fica giro assim.

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