Distância de Segurança
- thenutsbook
- 12 de jul. de 2020
- 6 min de leitura

(THE mood)
Estou com alguma dificuldade em escrever. Não por falta de ideias. Quem me dera que fosse isso. A verdade é que as minhas mãos ainda estão a tremer um bocadinho. Oxalá a letra se perceba quando voltar a olhar para isto, já com mais calma.
Andava há algum tempo a tentar arranjar maneira de escrever sobre a atenção que recebo na rua, sem que soasse uma convencida de primeira. Só que neste momento - neste preciso momento - acaba de abrir-se uma porta - do metro - e uma janela - de oportunidade. É que acabo de me enfiar aqui para fugir do senhor que estava há 15 minutos a seguir-me, no seu jipe, em plena Avenida de Roma. Parece-vos uma boa altura para falarmos sobre a atenção que recebo na rua sem que eu pareça uma convencida de primeira? A mim também.
Começou a acontecer na adolescência. E aí, normalmente, eu nunca estava sozinha, portanto era fácil de acreditar em mim. Porque ainda há todo este cenário de que a palavra das mulheres com histórias destas tem de ser “acreditada”. Como se a hipótese mais provável fosse tratar-se de uma invenção, um exercício de futilidade para apimentar os nossos dias de trabalho igual e tantas vezes salário inferior.
Escrevia eu, que sendo não uma, mas três ou quatro, as desgraçadas que eram seguidas, por um par de espertinhos, até ao colégio, não havia grande problema. Era desagradável, claro. Coibia-nos, fazia com que regressássemos mais cedo para a segurança dos nossos enormes portões amarelos. Mas não havia problema.
Quando comecei a estudar em Lisboa, as coisas subiram de tom. Mais uma vez, acho que não hei de ser a única. Mas comecei a estar sozinha. A andar sozinha. É claro que eu sabia a teoria da coisa. Todas as mulheres sabem. Mas sempre achei que modificar o meu comportamento em função de coisas como o machismo significava fazer uma concessão aos maus da fita. Ainda me lembro da tranquilidade com que entrava no comboio da meia-noite para Sintra, com 17 anos e uma T-shirt de caloira vestida. Ainda me lembro dos primeiros dois que atiraram aquele “Então caloira, andas perdida?” Nunca mais usei aquela T-shirt dentro de um comboio. Mas continuei a ir.
Até porque não andar de comboio à noite é francamente idiota. Como é que eu posso dizer isso depois do que acabo de contar? Porque a primeira vez - e única até agora, valha-nos Deus - que um desconhecido me apalpou o rabo na via pública, foi no comboio que faz a viagem inversa mas às duas da tarde. Vêem como estes anormais não têm ritmo circadiano?
Vou contando estas histórias. Ainda estão por aí as minhas histórias sobre os “50 euros para irmos já para um hotel, os dois” que recebi na 5 de Outubro e sobre aquele clássico “a tua sorte é que eu saio na próxima paragem” providenciado mais uma vez pela eternamente generosa Comboios de Portugal. Escrevo, primeiro, porque sinto necessidade quase física de o fazer. Depois, faço-o por sororidade para com todas as histórias como as minhas. Porque se ainda vivemos num tempo em que é preciso denunciar que isto existe, então denunciamos. Mas também - e surpresa, surpresa - faço-o por sororidade para com os homens. Homens, em oposição a animais de duas pernas. Aquelas criaturas maravilhosas que tantas vezes me alegram os dias com os seus piropos bem educados que nunca ninguém me vai conseguir convencer de que constituem assédio e muito menos crime. Para mim, a fronteira entre os dois mundos é bastante clara, ainda que respeite o facto de todos termos sensibilidades diferentes.
A sensibilidade também é um tópico interessante. Vivemos numa sociedade que aceita que os seus membros utilizem aplicações como o Tinder e se encontrem num quarto de hotel com a pessoa com que acabaram de fazer match meia hora antes - e ainda bem; não serei eu uma delas, certamente, mas força nisso - mas que se escandaliza se o meu vestido sobe dois centímetros quando ponho a mochila atrás das costas ou se apanho o passe no meio da rua depois de o deixar cair pela milésima vez nessa tarde. Nem por isso a contradição fez com que usasse saias mais curtas. De certa forma, tornou-me "pior" aos olhos dela. A última senhora que me interpelou na rua (com aquele ar condescendente de quem acha que me vai salvar o dia) para dizer "desculpe, mas tem o rabo à mostra" levou como resposta "não faz mal, querida, é um bom rabo".
Acho que depois de todo este contexto, já podemos passar à história de hoje. Que depois de tanta reclamação vital até parece pequena. A verdade é que ao passar pela Avenida do Brasil passei também por um jipe. O homem que estava lá dentro saiu do carro e veio na minha direção. Mas não lhe fechou a porta com força suficiente e teve de voltar para trás. Numa primeira fase, reparei nisto mas nem por sombras me passou pela cabeça que a ideia fosse abordar-me a mim. Estou há duas páginas a tentar escrever de maneira a que não se pense que me acho o centro do mundo e volto a reforçá-lo. É uma rua cheia de comércios e temos todos mais que fazer.
Pensava eu. Até que uns 100 metros à frente vejo o mesmo jipe encostado à beira do passeio, com o mesmo homem ao volante, a sorrir para mim com o braço direito apoiado no assento do co-piloto. A esta altura do campeonato, já tenho um protocolo. Passo por ele e quando chego ao cruzamento com a Avenida de Roma vejo-o avançar. Ele passa os semáforos e encosta novamente, logo a seguir ao cruzamento. Vejo-o perfeitamente, vira-se para trás e olha para mim também. Fico ali especada a olhar para ele como olho tantas vezes quando alguém me segue na esperança de que compreenda que 1) não sou parva e que 2) haja decência. Ele avança, por fim. E eu avanço também… mas o avanço dura-me menos de um minuto porque o filho da mãe (sim, estamos nesta fase) limitou-se a dar a volta ao quarteirão e até tem a sorte de eu estar a atravessar a passadeira no momento em que pára, mesmo à minha frente, para me dar passagem e - pasme-se - até apita para me dizer que está ali. Depois de eu passar, volta a encostar uns metros à frente. E eu agora daqui não saio que estão aqui dois agentes da Municipal a tomar nota de uma ocorrência qualquer. Até que a criatura percebe que se não sair dali vai acabar por tornar-se na próxima ocorrência de que a polícia irá tomar nota e decide avançar. Desta vez, não lhe dou tempo e deslizo até ao metro, que é onde estou agora. Tenho um sítio para onde ir mas não estou com muita vontade de regressar à superfície.
Mais uma vez, gostava muito de dizer que foi a primeira vez. Mas esta palhaçada do carro a ir encostando sempre uns metros à minha frente já me tinha acontecido, durante a viagem de finalistas. Só que hoje foi um mau dia para passar por outra, outra vez. Ontem tive de sair de um café onde estava a escrever por motivos da mesma ordem. Neste caso, saíram atrás de mim e ainda fui seguida durante uns bons metros até conseguir desaparecer num centro comercial. Durante o trajeto ainda tive de ouvir um taxista atirar-me o seu nada perturbador "Por acaso não a posso levar a algum lado, menina?". “Não, mas leve o senhor que me está a seguir, pode ser? Obrigada”. Por acaso, nunca fiz a experiência mas estou certa de que se respondesse a algum destes senhores, teria a oportunidade de o ver fugir a sete pés.
Agora que penso nisso, não sei se a coisa será muito diferente disto no que toca a relações pessoais. Até agora - e isto já vai longo - falei da situação de um ponto de vista exterior. Mas a verdade é que sempre tive mais jeito para as coisas de dentro. Por isso deixem-me, por esta vez, e se ainda não estiverem fartos desta verborreia, explicar-vos como isto me faz sentir. De facto, há todo um rol de boas metáforas.
Às vezes, sou um daqueles miúdos com imunodeficiência numa bolha de plástico. Absolutamente visível, exposto e, aparentemente, digno de comentário. Mas devidamente separado do mundo exterior, mais digno de espanto do que de interação. Outras vezes, sou um relógio bonito na montra. As pessoas param e olham. Raramente pegam nele. Pode dar muito nas vistas, também não queremos isso. Mas quase sempre, sou uma daquelas aves exóticas estranhas, que vemos nas reservas ou no Zoo. Impressiona, não necessariamente no bom sentido. Quase sempre, mete medo. E se chega demasiado perto, a reação é previsível: as pessoas assustam-se, encolhem-se e fogem. Há uma razão para a Estação de São Bento ser um dos meus sítios preferidos para trabalhar. Mais vezes do que as que queria, fui aquelas quatro paredes com uns azulejos engraçados em que as pessoas entram, tiram uma foto e vão se embora.
Toda uma sucessão de exemplos para dizer que nunca me sinto mais sozinha do que quando alguém me segue na rua.
Mas até uma estação recebe comboios especiais de vez em quando. Passageiros que acabam por alugar um quarto numa das cavidades cardíacas e vão ficando dada a inquestionável qualidade do atendimento. E dois deles estão à minha espera agora mesmo. A superfície também tem coisas boas. E por elas, vale sempre a pena subir as escadas do metro de novo. E pôr a mochila atrás das costas e - com toda a probabilidade - subir o vestido sem dar conta e ir meio caminho com o rabo à mostra. Aí, até me podem chamar de convencida. É mesmo um bom rabo.
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