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Dor crónica

  • thenutsbook
  • 27 de mai. de 2020
  • 4 min de leitura

Este texto não deveria existir. Em todas as aceções possíveis de semelhante frase, eu não deveria estar aqui. Sentada no canto do quadrado que eu insisto em chamar de escritório – apesar do espaço adquirir cada vez mais o carácter de uma sala de pânico - pressiono teclas freneticamente desde que cheguei a casa, sem sequer me dar ao cuidado de despir o sobretudo que me protegeu do ar gelado que por esta época domina os fins de tarde em Sintra. Mas uma promessa é uma promessa e eu cometi a insensatez de fazer uma ao afirmar que tentaria terminar o aglomerado desconexo de palavras que tinha disposto algumas semanas antes, a caminho de casa, na parte de trás de um envelope com o logótipo da faculdade no canto superior esquerdo.


Assim sendo, na véspera do exame de Cirurgia - primeiro motivo pelo qual eu não deveria estar a escrever outra coisa que não causas de icterícia - acabei por atrever-me a concluir o que tinha começado sem sequer saber se seria capaz de o mostrar a alguém uma vez acabado. Há recantos do ser que tendem a ficar melhor encerrados. E no entanto, naquela chuvosa hora de almoço, vi-me inapelavelmente sentada no comboio a escrever sobre a dor.

(A temática, de sobremaneira deprimente, é a segunda razão pela qual eu deveria imediatamente começar a estudar.)


Imagino que o leitor requererá, com toda a legitimidade, um contexto. Para ser mais específica, eu estava a caminho, não da minha residência habitual, mas da casa dos meus avós, o que nos últimos anos tinha vindo a constituir para mim - apesar de ser um dos meus trajetos preferidos – um intrincadíssimo problema.


Acontece que – imagine-se o ultraje – eles não iam lá estar. Aliás, é tamanha a desconsideração do Universo face à minha pessoa que eles nunca mais vão lá estar para me receber quando eu chegar a casa. Eis a etiologia da minha dor que, há medida que os anos passam, tem deixado de ser uma moinha contínua para adquirir os adoráveis contornos de uma enxaqueca; transformação que me tem impelido para tentar caracterizar por escrito os meus próprios acessos de dor. A minha própria história da doença atual. Fatores desencadeadores (atualmente tenho um vastíssimo repertório de músicas contraindicadas), de agravamento e de alívio.


Posição preferencial: sentada. Deitada nunca, não me seria permitido! Aprendi com o meu avô que permanecer além das sete horas da manhã na cama é o equivalente a passar o dia a dormir e isso não é admissível. Por isso fico sentada, muito quieta, à espera que a minha dor passe.


Habituei-me a reconhecer os sinais como um marinheiro reconhece uma tempestade que se aproxima e já compreendi que o segredo é mesmo esse. Deixar-me ficar assim, imóvel, em silêncio, com o grito colado em forma de nó na garganta e uma lágrima que corre na quietude do escritório. Às vezes não chega a correr de todo. Claro que não, jamais! Aprendi com a minha avó que apenas as alegrias se partilham com os outros ainda que, às vezes, caia na rebeldia de saltar esta regra (como se fosse necessária uma terceira razão para atestar a loucura que é acabar de preencher o maldito envelope).


Diagnóstico: A literatura divide-se. Ocasionalmente é sugerida a hipótese de hiperalgesia. Ou uma qualquer alteração no mecanismo de cicatrização. Perante a dimensão das minhas crises já chegou mesmo a passar-me pela cabeça – veja-se a gravidade do quadro – que o que eu possa ter sejam saudades.


Principalmente porque na prática, eles não morreram. Mesmo que eu não os tenha encontrado quando cheguei a casa revi com gosto o holograma mental dos sorrisos que durante tantos anos me esperaram. Um sentimento que não morre é uma patologia resistente a todos os fármacos.


Terapêutica: Totalmente empírica. Os resultados são variáveis. Conhecer a paciente ajuda. Essencialmente porque a imortalidade deles é muito mais do que a construção mental que está sempre presente. É uma verdade biológica. Se somos de facto uma amálgama de genes e interações ambientais com prazo de validade, a verdade é que a melancolia que às vezes cai sobre mim de forma inesperada não me pertence realmente a mim, mas a alguém que passava longas tardes sentado a escrever livros com a mente. E muito menos é verdadeiramente minha a tendência para começar a falar em espanhol durante uma discussão. Esse apontamento que tanto irrita os meus interlocutores foi emprestado pela mesma mulher temerária que há 60 anos atrás deixou o país que amava sem nenhuma outra garantia além do amor de um homem melancólico.


Dada a minha pretensão, cada vez mais firme, de continuar a ter acessos de melancolia espontânea, acordar às cinco horas da manhã aos fins-de-semana e falar em espanhol sempre que não me conseguir expressar em português, creio que irei ser a pessoa do mundo com os avós mais longevos. É para aprenderes, Universo.


Já me sinto ligeiramente melhor. E posso passar à aula de abdómen agudo. Afinal de contas, amanhã há exame e quero rever na minha mente a expressão orgulhosa deles se tiver boa nota.


Publicado originalmente na revista RESSONÂNCIA em 2017.

 
 
 

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