Voltei às tardes de caneta e caderno ainda a conseguir evocar aquele cheirinho que o Sol e o Mar têm em Espanha. Ainda com o sabor daquela água engarrafada que todos os meus amigos dizem que não sabe a nada e que a mim me sabe a glória. Conservo-os aos dois enquanto puder, como talismãs.
Às vezes, faço isso. Guardo coisas que senti nas gavetas mais baixas da minha cabeça para as ter à mão quando é preciso e evocar aquela sensação de conforto familiar e de paz que só as crianças a quem se leem histórias para adormecer conhecem de graça.
Claro que, como acontece com todos os recursos mentais de que dispomos, é um pau de dois gumes. Já tentaram tirar da cabeça a memória olfativa de uma clavícula - a intersecção mais bonita do Universo, li eu no início do Verão e nunca mais vi a coisa da mesma forma - que tomou banho em Old Spice? É o cabo dos trabalhos. Abrimos a mesma gaveta tantas vezes que aquela porcaria acaba por encravar ou empenar ou seja lá o que for e deixa de abrir. Já não sentimos perfume. Mas sentimo-la lá. E não há estratégia possível que não seja abordar a questão como se de uma verdadeira gaveta encravada se tratasse: esperar que o que a bloqueia caia para trás do armário, para o chão ou para as infinitudes do esquecimento, para poder abri-la e voltar a enchê-la de novo com coisas que deveriam ir para o lixo. Somos todos uns acumuladores.
Mas este cheiro e este sabor fogem à Categoria Lixo como eu fugi do meu uniforme verde. Porque aquele sítio - o sítio para onde a minha cabeça foi enquanto os meus pés se afastavam do hospital, é muito mais sobre o que se deixa do que sobre o que se leva.
Há uns tempos, numa dessas conversas sobre factos aleatórios de interesse questionável aprendi um pedaço de história que vale bem uma digressão intencional. Quando Colombo chegou à América e "descobriu" - com todas as aspas que quiserem - os ananases, os europeus deliraram com aquilo. Por incrível que pareça - e dados os custos de importação da coisa - o ananás tornou-se objecto de luxo, indicador de status social com a mesma validade - eternamente questionável, é certo - que um relógio ou uma mala podem ter hoje. Os ananases eram exibidos em festas como obras de arte: de peito cheio e na esperança de ouvir a interjeição correspondente de amplitude proporcional ao grau de impressionabilidade dos convidados. Mas esta não é sequer a melhor parte. Com o tempo, alguém deve ter percebido que não é tão importante ter dinheiro para um ananás (nunca pensei dizer isto) como parecer que se tem. E, portanto, surgiu o serviço de aluguer de ananases. (3 segundos para permitir a correcta digestão desta frase ... que não deste ananás, que esse é só para exposição). Efetivamente, aquilo que naquela terra se designa por postureo - a arte de aparentar - existe, pelo menos, desde o século XV e nesse momento histórico concreto, cursava com o aluguer de fruta exótica. Pronto.
Depois daquela conversa, fiquei com a vaga sensação de que passei grande parte dos meus Verões infantis em sítios e contextos em que a principal atividade de recreio dos veraneantes é comparar ananases e determinar quem tem o maior. Acho que em Portugal há outro nome para isto.
Não se deixem enganar. O meu sítio até pode ter ananases grandinhos, mas ninguém está muito interessado em medi-los. E eu também não. A mala que há uns anos atrás levaria 14 vestidos para 7 dias, acomodou uma muda de roupa, um bikini e um batom. Daquelas bolinhas coloridas que coleccionamos no fundo da mala. Pacote base dos tempos de Associativismo.
Antes de voltar, comprei duas Cruzcampo, assim a modo de gaveta de carne e osso. Prazo de Validade 07/2021. Quando se acabarem, como o perfume e o sabor, será hora de voltar. E de encher as gavetas com mantimentos para mais um ano.
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