Ainda nem vamos a meio e esta viagem já está a alterar as definições de conceitos importantes na minha vida. Conceitos fundacionais. Como o de “bolacha”. O que na Europa se designa por “american cookie” é do tamanho de uma pepita de chocolate das deles e seria capaz de me alimentar durante um dia inteiro. Evidentemente, aqui o tamanho importa e a escala do king size aplica-se a tudo: edifícios, bolachas, café. Que maravilha.
É precisamente num café que estamos, a duas ruas da sede da ONU. Concretamente, a meio caminho numa filinha em que quatro ou cinco pessoas aguardam - aguardamos - a sua vez de pedir um copo grande do nosso combustível preferido. Paralela a nós, outra fila, para as recolhas. Há um polícia que espera por uma caixa de donuts - longa vida aos clichés que nos fazem sorrir - e deixa passar um senhor que se dirige à fila onde estou. O outro agradece-lhe e responde com uma frase que, hoje, vale por duas:
- Thank you for your service.
11 de Setembro. Nova Iorque. Era demasiado pequena na altura para entender a dimensão real das mudanças que aquele dia trouxe à maneira “ocidental” de encarar o mundo. Mas o que se lê nas caras de quem aqui passa, acaricia algum dos nomes gravados na fonte e deixa uma flor, desconhece o que é o tempo nem tão pouco precisa de tradução: o futuro pode sempre beneficiar da esperança no desconhecido. Mas ao passado, só lhe resta o amor.
E por falar em amor, no sentido lato da coisa, aquele gesto foi uma gota num oceano de cortesias amáveis a que assisti e de que fui alvo ao longo destes dias. Não sei se vou descobrir mais alguma semelhança entre mim e as pessoas que se passeiam mais do que uma semana por aqui, mas esta convicção é certamente comum: se tens alguma coisa simpática para dizer, por Deus, di-la. Di-la já, di-la logo, imediatamente, sem pré-aviso. A bondade à queima-roupa é um milagre deste mundo, está aqui à mão e, ocasionalmente, atinge alguém que está mesmo a precisar dela, a meio de um dia péssimo e com a autoestima no subsolo.
Hoje, essa não sou eu. Estou prestes a dar o primeiro golo num balde de café que recebi quentinho o suficiente para provocar queimaduras esofágicas e ao fim de 2 minutos à espera que arrefeça, não resisto a provar um bocadinho.
Mas não chego a provar coisa nenhuma. Os altifalantes trocam de música e eu reparo que eles estão a tocar pela primeira vez desde que entrei. Não, estou aqui, estou bem, esta canção agora não. Quem é que eu quero enganar? Foi esta, podiam ter sido outras 200. No segundo, seguinte uma lágrima do meu olho mais míope escapa do leito onde lhe compete ficar e desce pela cara abaixo ao mesmo tempo que o filme dos últimos meses se desenrola, frames em dominó, tijolos a cair por dentro. Pela primeira vez desde que cheguei, recordo que esta viagem foi sonhada por mais uma pessoa. Mas é também a última, ou pelo menos, comprometo-me com esse esforço. “Vá lá, Pilar. Lágrimas, aqui? A adolescência já foi há dois códigos postais atrás.” A frase a projetar-se dentro da minha cabeça, lembrou-me a minha avó. O software dela não vinha com a funcionalidade de demonstrar emoção negativa em público, esses eram privilégios de administrador. A opção de monolágrima só apareceu na atualização seguinte e a transmissão parece ser mitocondrial. De maneira que a dita cuja escorrega incólume até à mandíbula e vai morrer ao calor do balde preto que a espera logo abaixo.
Venha da minha cabeça ou do mesmíssimo céu, a voz tem razão. Já vivemos outra vida antes desta. Esperam-se coisas boas agora. E o café é uma delícia.
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