Não me lembro da última vez que vi a lua. Que coisa sem sentido. Ou não. Damo-la como garantida, está no céu algures e se a apanhamos ou nos apanha ela, por acaso, ao passar na janela ou a percorrer uma autoestrada, agradecemos-lhe a presença luminosa, pensamos no que tivermos de pensar, se tiver mesmo de ser - pessoalmente, evito pensar sempre que posso - e seguimos.
Procurei-a todos os dias até chegar à sexta-feira e a filha da mãe não aparecia. Semana de lua cheia, supostamente, até isso fui confirmar. Mas, quando cheguei ao último dia da semana, confirmei o cinto de segurança e pouco mais. Já não me lembrava que fazer os 50 Km que separam o hospital da clinica em 20 min é mais do que uma possibilidade teórica e a transgressãozinha soube-me bem. Que saudades de estrada a sério, caramba.
Estes doentes curam-me a alma. E a médica sou eu, que vergonha.
- Olá, Doutora! Está mais bonita! Ui, quer dizer, não é que já não fosse bonita antes... mas hoje está mais!
O que esta simpática senhora quer dizer é que tenho menos 4 quilos do que tinha da última vez que ela me viu, há 2 semanas atrás. Nos segundos que levei a verificar o peso dela - por razões exclusivamente médicas, prometo - pensei em como a tempestadezinha da minha cabeça é capaz tanto de me tirar o apetite por tempo indeterminado como de me transformar no monstro das bolachas, decantando-se por uma ou outra opção de forma completamente aleatória.
- Obrigada, respondi eu com o meu sorriso pré-fabricado do IKEA, que desta vez custou mais a montar que o habitual.
- Isso sim são uns brincos decentes, Doutora!
Um erro comum na prática médica é acharmos que os doentes são estúpidos. Este senhor perguntou-me pela primeira vez se eu estava bem ao fim de duas semanas seguidas a usar as bolinhas douradas, também conhecidas entre mim e mim como os meus "brincos de sobrevivência", os serviços mínimos da autoimagem.
O que ele quer dizer é que é bom ver-me viva, outra vez. Eu que o diga.
- Estava em dívida consigo, respondi-lhe, e desta vez não foi preciso montar coisa nenhuma. O sorriso apareceu sozinho e eu rendi-me. Sorrimos os dois e isto que o senhor não tem metade dos dentes. Mas garanto eu - e vossas excelências acreditarão - que não se viu naquele dia sorriso mais bonito em todo o Ribatejo.
A tarde passou-se, como se diz por aqui. Não sei quantos cafés bebi, naquela sede tão minha que não é sede de líquido mas de calor. Vá lá, que o meu coraçãozinho já se habituou ao chuto e deixou de saltar pulsações. Aqui não se falham compassos, tanto quanto possível.
- Correu bem, Doutora?
A enfermeira da noite. Não estranho a pergunta. Há duas semanas atrás, a cama nao parou de abanar até bem dentro da madrugada, tal foi o frenesim de virar páginas das sebentas. Kamasutra como aquele em lugar tão asséptico nunca ninguem viu.
Toalha. Banho. A água quente já foi desligada, dizem-me.
E?, ia responder abrutalhadamente, antes de me recordar a mim própria: Pilar, as pessoas normais precisam de água quente para tomar banho. Esta anormal também, na verdade. Mas não é obrigatório. Não somos maricas, valha-nos Deus.
A água gelada desinflama qualquer coisa da febre dos ultimos dias. Doentes a caminho de casa, lavada, vestida, rendida, fui. Bato a enorme porta com enorme estrondo, quase tropeço em mim e quando me disponho a dar o primeiro passo em direção ao carro, ali está ela, como que a dizer "estás atrasada, estava à tua espera".
Lua cheia.
Dois olhos, como duas mãos de manteiga, deixam cair duas lágrimas, sem pedirem autorização.
Seguimos uma ao lado da outra a viagem toda e, quando cheguei ao escritório, a desgraçada lá encontrou maneira de se enfiar no espacinho de céu entre dois prédios enormes, com a sua melhor cara dourada a sorrir para mim.
Sorri-lhe de volta. Terceira vez hoje, já não se via um deboche destes pela minha cara há algum tempo. Vou procurar que se mantenha. Não voltei a vê-la, nem um pedacinho, mas não estranho.
Às vezes só vemos as coisas quando precisamos mesmo muito de as ver.
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