“Only in America”. Enroscada no sofá, assisti com uma espécie de carinho condescendente à obra de teatro que Kamala Harris procurou montar no comício da Pensilvânia. Não me interpretem mal, é claro que estou a torcer por ela. Mas o meu defeito profissional leva-me a pensar que se isto fosse uma peça da Broadway, o par protagonista não poderia adoecer. O sonho americano acaba quando nos mostram a conta.
Por cá, no Serviço Nacional de Saúde (SNS) somos mais de revista à portuguesa. Cabe sempre mais um à mesa mesmo que o almoço mal chegue para todos. A conta, pagamos nós, para não parecer mal às visitas, logo veremos como.
Os acordos de cooperação internacional para a saúde entre Portugal e os Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) existem desde 1977. Cada caso é submetido a junta médica no país de origem, que emite um pedido de evacuação. Em teoria, o SNS assume as despesas médicas e o país de origem as de alojamento. O pedido inclui uma morada em Portugal e o nome da pessoa de contacto que se responsabiliza pelo doente. Está previsto apoio social das autarquias locais.
Na prática, não existe uma entidade portuguesa que confirme a veracidade destes dados. Por vezes, é o Serviço Social do próprio hospital onde o doente já está internado a constatar que aquela morada não é real ou que o contacto fornecido, quando existe, recusa esse ônus. As juntas de freguesia nem sempre dispõem dos recursos necessários para prestar apoio.
Entre estes doentes, aqueles evacuados por insuficiência renal - simplificando muito, a precisar de hemodiálise - são um grupo particular: não podem regressar a casa, onde o tratamento do qual dependem para viver não existe. O estado português não paga alguns atos médicos isolados, paga todas as despesas de saúde, para o resto da vida. Se o doente não tiver para onde ir, os Serviços Sociais movem mundos e fundos para encontrar uma vaga na rede de cuidados continuados ou obter algum tipo de prestação social que permita ao doente subsistir fora do hospital. Não é um almoço isolado, é um bar aberto e vitalício.
Para agravar a situação, há listas de espera nos países de origem. Desconhecemos os critérios - médicos ou não - que cada um utiliza para decidir quem salva e quem não. Quando a via protocolar não é uma opção em tempo útil, há quem venha por conta própria. Alguns, dotados da leveza que só a liquidez oferece, falam um português perfeito e chegam a pagar alguns tratamentos a título particular antes de recorrer ao SNS e seguir o mesmo caminho que os restantes. Mas são a minoria. Outros, chegam ao aeroporto apenas para seguir de imediato para o serviço de urgência em condições clínicas menos do que simpáticas. Mal falam português e deixaram tudo o que conheciam para trás e para sempre. Já em 2018, um estudo sobre o perfil social dos doentes hemodialisados em Portugal sinalizava os doentes oriundos dos PALOP como um grupo particularmente frágil. Caídos, como de paraquedas, com baixíssima literacia em saúde e barreiras linguísticas difíceis de ultrapassar, o cumprimento terapêutico nem sempre é o melhor, o que também pode aumentar os custos do tratamento. Mais despesa.
Esta reflexão não é um exercício de xenofobia. Como já deve ser evidente, prefiro o sonho da solidariedade portuguesa ao sonho americano. Mas o modelo atual falha-nos. Falha aos cidadãos nacionais sobre quem recai o peso das despesas médicas de um grupo crescente de pessoas que têm escassas possibilidades de virem a constituir carreira contributiva no país que os acolhe. E falha aos doentes evacuados a quem oferece uma esperança de vida de primeiro mundo, é certo, mas nega os recursos básicos que lhes permitiriam integrar-se na sociedade, exercer uma profissão, ser autossuficiente, reunir a família, gerar riqueza, prosperar. Viver em vez de sobreviver. Fazem falta aulas de português, apoio na procura de emprego, entre muitas outras coisas mas também, claro, uma partilha mais efetiva da responsabilidade com os países parceiros e um sistema de fiscalização que funcione.
O contrato social não é um capítulo dos livros de história. É a base da sociedade civil moderna e, em última instância, um fator importante de coesão. Saibamos dar aos sonhadores que recebermos um lugar de pleno direito à nossa mesa.
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