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Página Rasgada

  • thenutsbook
  • 17 de fev. de 2021
  • 5 min de leitura


Madrugada de estreia. Quando o despertador toca, às 5h da manhã - nem sei porque é que ainda me dou ao trabalho de vos localizar no tempo, já todos sabemos o que a casa gasta - salto como uma mola e fico a olhar para ela, entre a expectativa e o medo. No ano passado, pensei em arranjar uma mas tirei rapidamente a ideia da cabeça. Com o início da pandemia tornou-se bastante claro que não iria pegar num único livro até ao fim do ano.


Mas a pandemia arrastou-se agarrada à minha perna como um cão vadio, através do Ano Comum e até à Especialidade e para esta vão ser precisos reforços. Compreendi claramente a gravidade da situação quando, pela milésima vez este mês, dei por mim a derreter todo e qualquer projeto de fim de semana produtivo em mais 48h de fusão íntima e perfeita com aquele mestre da sedução que é o sofá da minha sala. Só havia uma solução para romper esta atração fatal e a decisão estava tomada. Arranjei uma secretária.


Na verdade, trata-se de um móvel antigo numa localização nova. Já cá estava, neste apartamento, quando nasci e, com sorte, resistirá depois de eu desaparecer. Mas por agora, encontrámo-nos - ou voltámos a descobrir-nos uma à outra e vamos tirar partido disso. Deixem-me aprofundar na questão da localização. Em frente à varanda, virada para poente para eu poder ver o pôr-do-sol como fazia naquelas tardes de infância regada a equações de segundo grau e leite com chocolate. Ao lado do tocador com a coleção de maquilhagem para permitir outro tipo de pausas criativas. Daquelas em que vou ao quarto buscar um carregador ou qualquer coisa parecida e saio de lá com um olho esfumado e outro rasgado por um eyeliner cujo traçado é capaz de intimidar uma autoestrada nacional.


As coisas pequenas impactam-nos de maneira diferente agora, não é? Privados da grande maioria dos prazeres quotidianos, começamos - começo - a tentar fazer a transição entre as saudades e a ânsia de um regresso impossível de calendarizar numa tentativa de reinvenção. De ir buscar felicidade a outros sítios, a outros verbos.


Preciso dela agora mais do que nunca. Como saberão os selectos membros da Associação de Pais e Amigos das Pessoas Médicas (coletivo a carecer ele próprio - coitaditos - de um grupo de apoio só para os seus membros) a mui nobre casta de 2019, montinho de médicos no qual me incluo, começou a 4 de Janeiro o seu Internato Médico nas mais variadas especialidades e muitos de nós demoraram entre 0 e 7 dias a verem os seus programas formativos substituídos por uma convocatória obrigatória para as enfermarias COVID.


Quanto a mim, ainda não foi desta que o Universo retirou o cobertor de unicórnios que me pôs às costas algures no tempo. Colocada numa Medicina limpa-até-ver e a prestar assistência direta a doentes COVID apenas no serviço de urgência. Colocada num daqueles hospitais de enfermarias ainda forradas a azulejo, antigas, castiças, monumentais. O tipo de sítio e de arquitetura que ainda consegue - mesmo agora - o milagre improvável de confortar-me. Isso sim, deixei o Santa Maria mas apenas para entrar num Centro Hospitalar igualmente avantajado e onde a palavra “urgência”, por estes dias, diz efectivamente tudo.


O que me leva ao elefante na sala. De alguma maneira, a minha secretária vem assentar uma âncora simbólica no momento em que a minha cabeça procura ainda um rumo por entre o trabalho e por entre as páginas dos últimos dias. Passei todo o mês de Janeiro a tentar escrever sem saber como. Em parte, porque pensei que a esta altura já estaria a contar uma história diferente. Não digo que seja inocente ao ponto de acreditar que deixaríamos a pandemia em 2020. Estava apavorada com as consequências do período de Natal, como toda a gente com dois dedos de testa. Mas quis acreditar na responsabilidade individual tanto como na minha capacidade de controlar a quantidade de chocolate que ingeri nessas semanas festivas: previ um aumento controlado e falhei redondamente. Fui escrevendo frases soltas a cada novo pico de mortos e infectados com a certeza gelada de que não seriam os últimos. Fui escrevendo, à beira da consciência, depois daquele banco que me fez chegar a casa, ir ao tapete - literalmente - e chorar.


Sinto que a quase totalidade daquilo que tenho escrito trata exclusivamente da pandemia e estou farta disso. Até eu fiquei anestesiada por entre os lamentos de colegas exaustos. Todas as nossas histórias são a mesma, ao fim de algum tempo. Também já não confio na pedagogia, seja qual for a sua fonte. A sociedade tomou uma decisão, consciente ou inconscientemente, que foi resultado de muitos fatores. Culpa nossa, que encarnámos o papel de mártires invencíveis. Culpa da governação, que pegou num povo sem literacia em saúde e fez cada cidadão acreditar que era um Éder, por ter marcado um golo de PlayStation na primeira vaga. Culpa individual, no fim de contas, porque somos os últimos responsáveis de tudo o que fazemos. Mas essa decisão parece-me irrelevante agora. Passámos o ponto de não retorno. As comunicações com frases como “vamos vencer o vírus” esquecem que já perdemos mais de 10 000 vezes, uma por cada pessoa que já morreu (excluindo mortalidade não COVID que há de duplicar este valor) e que ainda que parássemos os contágios agora, já teríamos pela frente pelo menos um mês terrível de internamentos e mortes. O tsunami já aqui está e cabe-nos a nós dos fatinhos brancos tentar que se afogue o mínimo de pessoas possível. Trabalhar.


Ao mesmo tempo, não posso fingir que isto não existe, que não afeta as nossas vidas, nem acaba por ser o centro de quase tudo ultimamente. Parece fútil falar sobre as festas, as reuniões e as histórias que nadavam por aqui antes, até porque obviamente deixaram de acontecer da mesma maneira. Mas claro, tenho terríveis saudades delas.


Já disse qualquer coisa sobre o meu “bancus horribilis”, certo? Bem, o que aconteceu a seguir não foi menos importante. Levantei-me daquele tapete verde - onde também me deito sempre que estou feliz - tomei banho, fui à cozinha, fiz um café e preparei torradas com manteiga. A pandemia não vai ser um capítulo para rasgar do caderno quando tiver acabado - e há de acabar, independentemente de não sabermos quantas páginas terá. Vão ser parágrafos, frases, palavras imiscuídos por entre viagens de carro, encomendas online, pão feito em casa, videochamadas de 3 horas e tantos outros pedaços de felicidade mundana. Tão mundana como uma secretária. E nesses, eu já sei de sobra o muito que há para ir contando. Voltamos a ler-nos?

 
 
 

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