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Quanto custa uma Coca-Cola?



As conversas familiares fascinam-me. Sempre o fizeram e há muito que são guardiãs de memórias e ensinamentos mágicos nos mais variados contextos. Havia tanta sabedoria oculta no café com leite a escaldar das minhas primas como nas cervejas geladas que eu própria desenterrava do frigorífico quando o meu avô recebia as visitas dos amigos. O meu avô. Aquele poço inexpugnável de palavras que ele nunca dizia. Que media ao milímetro, com uma ponderação curtida por meia vida passada num tempo em que abrir a boca nos podia colocar em perigo de vida e a outra metade num em que toda a gente pensa que tem algo relevante para dizer. Do primeiro, ele não gostava de falar. Do segundo, bebi todas as palavras que o próprio nos concedeu.


O ponto alto da coisa era o jantar, momento em que a dissertação sobre a estratégia nacional para a economia era a entrada, o prato principal e a sobremesa, para desespero da minha mãe e da minha avó. Ele não era um treinador de bancada. Não jorrava palpites baseados nas gordas do dia. Era um Senhor vindo de uma aldeia no Ribatejo que gostava tanto de engenharia como de gestão e que graças à carreira militar tinha tido o privilégio de estudar ambas. Era o improvável cuja insistência em estudar - tantas vezes interpretada naquele tempo como pouca vontade de trabalhar - fez com que onde os meus bisavós guardavam instrumentos agrícolas eu guarde agora pastas e pastas com o carimbo "CONFIDENCIAL" na capa.


Em cada palavra, o peso e a honra de ambas essas escolas. Em cada palavra um tijolo no arranha-céus que são hoje as conversas de sofá com a minha mãe. As longas dissertações curiosamente parecidas com aquelas que lhe costumavam pôr os cabelos em pé.


Esta semana comecei a pensar no valor real desta espécie de mini património imaterial. Já não sei se estávamos a discutir a ascensão do Chega ou o Brexit mas recordo que terminámos nas transformações que tanto o 25 de Abril como a adesão à CEE trouxeram a Portugal. Falámos do perigo da história ser repetida e de que tudo o que temos agora seja tomado como garantido. Concluímos que era difícil que assim não fosse. Já tínhamos nascido cá dentro, bafejados pelo vento fresco da liberdade e de uma série de garantias que nem equacionamos há quão pouco tempo o são realmente.


Eu sim. Graças àquelas conversas. Estou longe de poder falar com conhecimento de causa sobre o sistema de ensino em Portugal, mas quando passei por ele, a história raramente costumava saltar do livro onde estava encasilhada. Eram aqueles os factos, era aquilo que se tinha passado. Que tinha ficado nos registos formais, académicos. Algum professor mais entusiasta tentava trazer os acontecimentos até nós mas nunca senti maior ligação ao que me era contado ali do que ao conteúdo do tratado de Tordesilhas. A História das minhas aulas era sempre pretérito perfeito.


Em casa, não. Em casa não houve guerra do Ultramar. Havia a minha avó que dormia com uma arma automática debaixo da cama (que sabia usar) e o semblante contraído do meu avô nos dias em que a missão era ir bombardear alguma localização estratégica. Não houve 25 de Abril. Havia uma autorização por escrito de apresentação obrigatória de cada vez que ela queria viajar sem ele e um silêncio, um silêncio imposto à minha mãe desde pequena, que não compreendia porque é que os pais a instavam a não expressar qualquer opinião em público. Também não houve adesão à CEE. Havia viagens a Espanha para comprar coisas extraordinárias e exóticas, inacessíveis no Portugal daquele tempo… como uma Coca-Cola… ou uma esfregona.


Estou convencida que a história é um pretérito imperfeito e que os que a fizeram nos deixam a missão de a aperfeiçoarmos.


A urgência de estimar e aprofundar os progressos conquistados pelo país nos últimos anos não vai ser sentida por ninguém que não veja os ramos transformadores da nossa árvore comum estenderem-se até aos dias de hoje. Não sob a forma de factos que importe conhecer até à exaustão. Sob legado vivo em permanente mutabilidade (para bem e para mal) de cujos privilégios beneficiamos continuamente.


Saibamos explicar aos que nos sucederem, o real valor de uma Coca-Cola.


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