Quebra-Nozes | 2# Pela tua pele

Vamos chamar-lhe Maria. Está internada há vários dias e é "minha" desde que chegou. "Tens uma doente que veio para morrer", disseram-me, naquela manhã. Que nojo de frase. E que erro de raciocínio. O objetivo é exatamente o contrário: ir fintando a coisa, por anos ou por horas. Ninguém vem para um hospital se não quiser ver o dia seguinte.

Neste caso em particular, aquelas palavras eram ainda mais absurdas. Admitida por pneumonia, a cumprir antibiótico prescrito, com claríssima intenção terapêutica. Mas era uma senhora idosa - não demasiado - e demente. Todas as demências são demasiadas.

Agarrei-a como os agarro a todos. Descobri a história dela ou pedaços. A neoplasia bilateral da mama em 1996 e a dupla mastectomia com reconstrução no mesmo tempo cirúrgico. Isto já é qualquer coisa. Nos anos 90, associações como a Amigas do Peito eram esforços locais de familiares corajosos, numa capital em que era mais fácil arranjar heroína do que um soutien protésico. Mas a D. Maria é ainda mais especial: além de um estupendo par de mamas, tem uns lindíssimos mamilos tatuados. Mais uma lição de história feminista. O primeiro tatuador conhecido por restaurar a anatomia (e a autoestima) feminina desfigurada pelo cancro chama-se Vinnie Meyers e faz este trabalho desde 2000. Cá em Portugal, Sérgio Carvalho foi o artista que começou um projeto semelhante (só!) em 2016. O que a D. Maria tem no peito é uma prova de carácter de alguém à frente do seu tempo, com fome daquele dia seguinte que agora só pode ver por entre os escassos segundos diários de consciência mantida. Mas esses segundos merecem que se lute por eles.

Não sei se lhe chegarei a dar alta. Escrevo agora com medo de ter de lhe acrescentar um parágrafo triste, se esperar. Assim, aconteça o que acontecer, ficaremos com a imagem viva do terramoto de mulher que deve ter sido. Da sobrevivente que, como num penúltimo acto de teimosia rebelde, ainda não morreu.