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Questão de Princípio



Ela não sabe ler nem escrever. Tem as unhas negras da cor do abandono a que se votou após a morte do marido há mais de 30 anos. Bebe uns copos. Vê-se pelas análises mas não lhe comento nada a esse respeito. Agora não faz muita diferença.


Entrou ontem na urgência com dor na virilha. Artrose da anca? Cólica renal? Fratura? Nega trauma. Mas o ortopedista decide pedir TAC por alguma razão dúbia. Se calhar intuição. Se calhar sorte pura. A anca está bem mas a parede do cólon tem um espessamento. Foi um achado, um incidentaloma como nós lhe chamamos.


Vem parar a mim, aqui na Enfermaria, onde podemos orientá-la mais depressa. Mas a colega que a admitiu não lhe conta que a internámos porque achamos que tem um cancro.


Nem sempre é falta de coragem, sabiam? Há quem queira proteger o doente do sofrimento a todo o custo (com doses mais ou menos insuportáveis de condescendência). Há quem ache que "a palavra" nunca deve ser introduzida até termos todas as certezas, pelo impacto de bomba atómica que gera invariavelmente. Mas às vezes é só uma questão de estratégia. De diferenças de opinião sobre o que fará melhor àquele doente. De ter dúvidas fundadas sobre se ele é capaz de compreender o que lhe vai ser dito.


Sabe que tem "qualquer coisa" nos intestinos, mas não vai além disso. Pergunto-lhe se já ouviu falar de cancro do cólon, na televisão por exemplo. Diz-me que não liga a nada disso. Que quer morrer desde que o marido morreu. Falamos sobre isso. Tento dizer-lhe que nesse tempo cabe uma vida inteira e que a dela - como todas - tem valor independentemente das dos outros. Há muitas mulheres que não sabem disto. Homens também; nestas idades, depois das mulheres lhes terem oferecido a sua vida inteira, não perdoam e levam ambas - a sua, que deram e a dele, quando partem. Digo-lhe isto tudo mas acho que ela não acredita em mim.


O que vem nos livros é que o doente também tem o direito a não saber, se assim entender. Mas na prática, isto só se consegue fazer numa fase posterior, não é? Não me vou virar para ela e dizer-lhe "Olhe, querida, se tiver alguma coisa grave, quer saber?" Mais vale colar um post-it a dizer “ACHO QUE TEM UMA COISA GRAVE” na testa. Restam-me os fundamentos da escola primária. "Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti."


Então explico. Como explicava às mais incapazes das colegas de escola as equações que para mim eram água cristalina. Invento que a alteração que encontrámos é como um sinal na pele. Que há sinais que não trazem problema nenhum e sinais que têm de ser tirados, porque são tumores. Que ainda não sabemos a que grupo pertence o dela. Ouviu-me com perfeita indiferença, agradeceu as explicações e ficámos por ali.


Às vezes, surpreendentemente, não tem nada a ver com o doente. Tem a ver com a nossa interpretacão subjetiva, pessoal e em permanente mutabilidade daquelas máximas todas que juramos no início.


Muitos atos médicos radicam nelas - ou no que delas fazemos - para lá de qualquer ciência.


Exato. Às vezes é mesmo uma questão de princípio.


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