Não. Não, não, não, desculpem. Esta era eu. Era. Pronto, assim está bem.
Meto um bocadinho de medo, não meto? Assim tão séria. Tinha 7 anos quando a minha mãe pediu a uma artista de rua para pintar o meu retrato e a minha relação com a obra sempre foi muito conflituosa. Ou não, porque um conflito implica ofensivas das duas partes e aquele desgraçado leva 17 anos a defender-se o melhor que pode de os meus olhares de ódio unilaterais.
Ali pendurado, habitante único da parede maior do quarto da minha mãe, relembrando-me constantemente “da nuvem”. Ouvi esta expressão pela primeira vez numa aula de Medicina Interna do quarto ano. O caso - contava o Prof. Ducla Soares daquela maneira muito sua de pronunciar as palavras - que o doente tinha vindo à urgência porque - e cito - tinha descido sobre ele uma tristeza, “uma nuvem”.
A nuvem era, na realidade, um enfarte agudo do miocárdio. E eu achei que aquilo tinha tanto de terrível como de extraordinário. E dei esse nome à minha própria tristeza desfigurante, uma espécie de boomerang asqueroso que sou capaz de atirar para longe durante semanas e meses mas que volta e meia regressa, me acerta na testa e me faz um hematoma do tamanho de uma bola de ténis que demoro pelo menos dois dias a conseguir voltar a escorraçar.
Por isto mesmo, vou detestando aquela tela, por inoportuna. A verdade é que quando o boomerang acerta, pouca gente repara na nódoa negra. Sem dúvida, um dos principais benefícios de estar sempre a fazer alguma coisa ou a correr para algum sítio. O movimento distorce a imagem. Se a pararmos no momento errado, ficamos com isto.
Aconteceu o mesmo com a sessão que fiz para o livro. Quando a fotografia da contracapa saiu à luz, a primeira mensagem que recebi não foi de felicitação. “Estás bem? Pareces triste.”
Quandos saí de casa, deixei-o lá. De alguma maneira, senti que tinha de pedir autorização para o levar e foi assim que fiz. No dia em que regressei, à socapa como sempre desde a primeira vez, tinha tanta pressa (e tanta raiva) para o tirar, que agarrei numa faca e fiz um corte da esquerda à direita, para o conseguir dobrar dali para fora. Deus deve gostar mesmo de mim porque apesar de ter rasgado a totalidade da espessura da esponja sobre a qual assentava o papel, este último não tinha um arranhão.
Isso pôs-me a pensar. Durante dias, “joguei ao sério” com aquela porcaria. E percebi que, apesar de tudo, a minha nuvem está ali por uma razão. Relembra-me que não devo tomar nada como garantido. Que sou pessoalmente responsável pela minha felicidade e que tenho de trabalhar para ela como trabalho no hospital. Confortámo-nos mutuamente, como velhas conhecidas através das paisagens mais sombrias. E em vez de respeitar esta minha luzinha de alarme de interior, vou e resolvo dar-lhe uma facada, literalmente. Alguém precisa de aulas de gestão emoocional.
O caso é que a colei. Colei a espuma. Emoldurei de novo. Não consegui convencer-me a pendurá-la em casa. Seria um confronto diário que dispenso. Então guardei-a no sotão. Também literalmente. Vive lá, entre tapetes cor-de-rosa, álbuns de fotografias e uma cadeira de baloiço. Uma terceira idade digna, digamos assim. Tranquila mas fácil de mobilizar quando e se necessário.
Aquela sou eu. Ainda. Às vezes. Em parte. Para sempre. E não há problema.
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