Sempre senti que colocar o Spotify em modo aleatório implica um certo risco de vida. Qualquer coisa como colocar o nosso - meu - eternamente volátil estado emocional numa roleta russa, indiferentes ao resultado final. Suponho que acontece a mesma coisa a toda a gente que tem uma música para cada pedaço de vida, quase para cada ciclo respiratório. Acho que já dissertei qualquer coisa sobre as canções - ou as playlists inteiras - perdidas, resignificadas para sempre graças aos momentos e pessoas que lhes associamos. Mas isso é a ponta do iceberg. Quando era mais pequena, tomava decisões com base na música que passava a seguir. Não tínhamos Spotify mas o esquema era o mesmo. Ao ponto de eu ponderar se o Windows Media Player não me deve uma indeminizaçãozinha. E agora, apesar de já não poder depositar as culpas pelas minhas más decisões nas plataformas de streaming, certamente que as poderei culpar pelas manhãs que começam com a torrada a cair dentro do café (hoje mesmo, sabe Deus como).
É muito incapacitante, na verdade. Uma pessoa vai no comboio a ouvir reggaeton (se, depois de tantos anos, ainda não fui particularmente julgada por nada do que escrevi, acho que já entrámos na fase da nossa relação em que é seguro dizer isto) e só repara em coisas como aquela massa azul linda de Tejo que se vê da janela ou no cabelo - igualmente azul - do rapaz sentado na ponta da carruagem. Até que aquela aplicação do demo opta por passar ao Rui Veloso. Primeiro, são só umas cócegas na base do crânio, uma coisa nostálgica mas inofensiva. Só que quando dou por mim já só vejo “pedras sujas e gastas e lampiões tristes e sós”. Quando dou por mim, o “milhafre ferido na asa” sou eu. E estava a fazer um excelente trabalho a esquecer-me disso até que mo vieram relembrar.
Há não muito tempo atrás, costumava desfrutar de um excelente contrapeso. Mas desde que as discotecas fecharam, pôr os braços sobre o teclado e a coisa mais parecida a pô-los no ar que irei fazer… e dançar, só a minha mão, de caneta em punho. A balança está desequilibrada. Rui, acho que vamos ter de dar um tempo, querido.
Por acaso, confesso que tentei, brevemente. Bani as músicas tristes. Adeus Veloso. Alex Turner, foi bom enquanto durou. Adele… thank you, next. Já perceberam a ideia, certo? É que ver a playlist de alguém é mais íntimo do que vê-la despida.
Direi apenas que acho que foi a dieta mais curta que já fiz.. e já fiz umas quantas. É que a semana passada fui jantar fora. Pelo menos, isso já podemos fazer. E o Hard Rock pode até ter deixado de ser interessante mas sempre passaram boa música.
Ora aí está. Já não passava uma noite a cantar à volta de uma mesa, desde antes da quarentena. Algures a meio da “Wonderwall”, fez-se luz. Flashback, na verdade. Tenho esta memória na cabeça, de passar a última tarde do 9º ano sentada na relva a berrar os versos todos com amigos que não voltei a ver. Até àquela tarde, achava a canção tristíssima. Mas, desde então, tornar-se-ia para sempre sinal inevitável, irremediável de velas a favor do vento.
Posta ali, a cantar de novo, desta vez com pessoas que espero continuar a ver daqui a 20 anos, sou relembrada de que quase tudo o que nos fez chorar no passado, pode sempre fazer-nos rir ao virar da esquina. E que temos sempre alguma obrigação moral de ajudar no processo. Uma espécie de autocortesia. Nem que para isso seja necessário obrigar os meus amigos a entoar o “Porto Sentido” até que a voz lhes doa. Afinal, estão cá para isso.
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