Ainda vou acabar a reunir as histórias das minhas senhoras da cirurgia da mama em livro. De certa forma, este mês e meio de “nota de entrada -> pré-ops -> cirurgia -> vigilância -> nota de alta” veio confirmar aquilo que já suspeitava sobre as grandes calamidades que nos acontecem na vida: detém-nos em seco, é certo. Mas nada mais se detem.
O Universo não gosta de dar descontos a ninguém, nem me parece particularmente fã do meio termo. Nunca irá dizer a ninguém “ok, vou mandar um meteorito na tua direção, mas não te preocupes: vamos deixar todos os outros aspetos da tua vida em piloto automático, para tu poderes gerir a coisa com calma”. Claro que não. O que o Universo espera da pessoa que escolhe é que efetivamente não só receba o meteorito com a testa - como quem recebe uma bola parada do Alex Telles - como também consiga cabecear para golo enquanto continua a fazer malabarismo com todas as bolas - tanto as coloridas como as mais cinzentas - que compõem aquilo a que chamamos vida. E por isso é que há mulheres diagnosticadas com neoplasias da mama durante uma pandemia. Porque o Universo até pode ser um gajo interessante. Mas como a maioria dos gajos interessantes, carece de bom senso.
A fornada desta semana era peculiar. As 4 senhoras, que internámos no mesmo dia e no mesmo quarto, tornaram-se amigas assim que as instalámos e, se ignorássemos apenas por um bocadinho o motivo porque ali estavam, quase nos convencíamos de estar numa festa de pijama para senhoras de meia idade. Quem nos dera que assim fosse.
O caso é que estas maravilhosas malabaristas se afeiçoaram umas às outras. De tal maneira que no dia em que me viram chegar com apenas 3 notas de alta, berraram quase em uníssono, “Falta a Hortênsia!!” (Hortênsia parece-vos bem? Tenho de melhorar isto dos pseudónimos).
A D. Hortênsia não estava no quarto, intuo eu, porque sabia que não iria embora naquele dia. O corpo dela ainda precisava de mais tempo e não estava ali - imagino - porque a felicidade dos outros também faz doer, às vezes. Lá a consegui observar mais tarde. Disse-lhe que lhe dávamos alta no dia seguinte. Quando terminei o exame, soltou-me, de repente:
- Tira lá a máscara, filha, só pa’ eu ver a tua carita.
Duvidei sobre o que doeria mais: a porcaria do meteorito ou o facto de ter tido de ultrapassar um dos momentos mais críticos do jogo sem público nas bancadas. Sem uma única cara familiar, um amigo, alguém cuja visita (continuam proibidas) pudesse esperar durante os dias de recobro. Não admira que as 4 parecessem tão chegadas em tão pouco tempo. Não admira que fosse tão importante ver o sorriso de outra pessoa ainda que se tratasse de uma estranha. Podia não haver adeptos, mas pelo menos havia colegas de equipa. E eu era um deles.
Demos-lhe alta no dia seguinte, tal como prometido. E o meu sorriso nunca foi tão valioso.
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