Há uns meses atrás, entre as dezenas de pessoas que chegamos a receber numa urgência de Medicina, entraram pela minha 3 senhores dos seus quarenta anos. À partida, não poderiam ser mais diferentes, as novas aquisições dos Laranjas Limpos (leia-se, livres de COVID, em princípio, oremos).
O primeiro, o mais antigo no que diz respeito ao tempo de permanência podia ter sido retirado da prateleira de uma biblioteca, pelo aspeto ou de um retiro budista, pelo trato. Disfarçava bem mas notei-lhe o desconforto de ser ver num ambiente que não era o seu. Vamos chamar-lhe o Sr. Tudo bem.
O segundo, de passo mais decidido, como se estivesse mais à vontade que o anterior em território desconhecido, mas com uma expressão distinta de dor no rosto. O Sr. Cabedal, com aquele casaco que 90% dos homens portugueses têm no armário - e estão convencidíssimos de que lhes fica a matar.
O terceiro gerava mais preocupação. Vinha em cadeira de rodas e com uma prostração de tal ordem que a colega que estava comigo soltou um "ui, este tem todo o ar de IMV (Ingestão Medicamentosa Voluntária); palavrinhas que iria engolir como sopinha de letras, 30 segundos mais tarde. O Sr. Ai. Penso que não preciso de explicar porquê.
Aparentemente, estes senhores não tinham absolutamente nada em comum. Salvo uma coisa. Todos levavam uma das mãos à região lombar, esquerda ou direita conforme o caso. Todos tinham acordado com dores incapacitantes nessa zona e todos tinham tido vómitos. Completa-se o quadro com a maldadezinha que vêm em todos os livros: todos berraram com a clássica pancada seca na respetiva região lombar. O diagnóstico está no título. E eu estava a começar a acreditar nos colegas que dizem que os diagnósticos vêm por dias. E aquele era o dia da cólica renal.
Fazer urgências em sala aberta é muito parecido a trabalhar num bar. Aliás não há grande diferença, do ponto de vista prático, entre mim e o "camarero" que serve os pequenos almoços em qualquer barra madrilena. Todos os pedidos são diferentes, precisam de sair todos e precisam de sair agora. "São duas torradas com doce e manteiga, um pão com tomate e azeite e uma ração de churros! Vamos! Vamos! Vamos!" Desta vez, os meus clientes facilitaram-me o trabalho e o pedido era o mesmo para os três. "Saem três doses de Paracetamol + Cetorolac iv, 3 análises com Urina II, 3 Rx abdominais e 3 Ecografia Renais! Boraaaaaa!". Não sei o que adoro mais, bares ou o meu trabalho. É um empate, certamente.
Claro que evoluiram de maneira diferente. Mas aposto que não acertam nas apostas. O Sr. Tudo Bem tinha uma lesão renal aguda e precisou de ficar em observação connosco mais tempo. Quando teve alta, explicámos-lhe os cuidados a ter e os exames de controlo que se seguiam. Ele sorriu e respondeu "Tudo bem".
O Sr. Cabedal parecia tão confortável porque a nossa urgência não era propriamente território desconhecido. Era a terceira vez que se sentava naquela cadeira pelos mesmos sintomas e saiu dali com referenciação à Urologia.
O Sr. Ai foi melhorando de tal maneira que acabou por adormecer como aquelas crianças que adormecem depois de uma tarde de choro. Deixámo-lo dormir até ao limite do razoável e demos-lhe alta. Raramente o que vemos externamente é resultado do único evento agudo que causa dor física ao doente. Muitas vezes, o exterior é o espelho de todas as dores dele, do corpo e da alma, que parecem sempre pesar mais perante um evento agudo de doença súbita.
Este dia foi o primeiro de muitos em que passei a deter-me com mais detalhe sobre as diferentes maneiras de encarar a mesma doença. Mais ainda onde estou agora. Todas as 5as feiras interno 4 doentes com o diagnóstico de neoplasia da mama, para serem operadas no dia seguinte. E tenho aprendido muito com as histórias, diferentes mas iguais e com as estratégias de cada uma.
A semana passada, tive uma surpresa. Internei uma senhora surda-muda, casada com um senhor em iguais circunstâncias. A despedida deles foi qualquer coisa que nem vou descrever, para a guardar só para eles.
Mas depois da história clínica (a comunicar por escrito), exame objetivo (provavelmente a milésima palpação mamária daquela senhora) e colheita de análises, vi-me a ter de regressar à "sala da mama" para completar algumas coisas e dei por ela sentada, na mesma posição em que a auscultei, piquei e deixei… a resolver um Sudoku. Um minúsculo quadradinho com números ainda mais minúsculos num bloquinho amarrotado.
O mundo desta senhora vai cair amanhã e ela faz Sudoku. A imagem soou-me familiar. E acho que a entendi. Primeiro, a definição de mundo que cai é variável. Segundo, até as mulheres do leme precisam de distrações do Adamastor que enfrentam. E terceiro, sobre aquela mulher pairam duas belas verdades incontestáveis: uma, dançar sobre os nossos próprios escombros ajuda a levantá-los. E duas, os números nunca falham a uma mulher valente.
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