O tio Gaspar tinha Parkinson. Isto das doenças degenerativas é feio por Natureza mas em pessoas de uma lucidez particular, há feridas que ardem com um pouco mais de requinte.
Da última vez que estivemos juntos, ainda me disse, muito devagarinho, como já só conseguia dizer: “não há pôr-do-sol como o de Tomar”.
Não éramos assim tão chegados. Não cheguei a vê-lo quando as coisas ficaram mesmo feias. Mas levei-o dentro todos estes anos. Cuidei - cuidámos - da casa onde ele e o meu avô nasceram e que calhou ao segundo numas partilhas que foram decididas com dois papéis dentro de um chapéu. A divisão durou uns 40 anos, os mesmos que demorei desde então a nascer e a assinar a escritura sobre o que estava no papel que o meu tio tirou.
Assim que hoje, agora, quando o relógio entra na décima quarta hora deste dia, a minha alma salta da cadeira. Só a minha alma (disfarça Pilar, que ainda estás a trabalhar, disfarça). Tento que a minha imagem a picar o ponto à saída seja o menos parecida possível à da clássica lusopessoa que vai de fim-de-semana. Mas não consigo. Tudo o que não seja a Estrada Nacional que se estende à minha frente é absolutamente irrelevante.
Continuo a recusar-me a pagar portagens. As da A23 em específico, custam o mesmo que uma saia. Ida e volta. Desde pequena que meço todos os potenciais encargos financeiros que possa ter com dois comparadores muito concretos. Saias ou chocolates, consoante o tamanho da empreitada. Pode parecer arcaico mas comigo funciona. “Funciona” é a melhor expressão que me ocorre para descrever a minha cabeça nos últimos tempos. Há dias em que é um 1 a 0. Aquela vitória pela margem mínima. Mas até disso aprendi a gostar. Algures durante todos este caos que ainda vivemos - o mesmo que aniquilou a minha convicção pueril de que íamos sair do túnel em meio ano - li um artigo sobre a magia de reparar as coisas pequenas quando as grandes estão em estilhaços. Em plena pandemia e perante uma deterioração moral lenta mas consistente das instituições - e, porque não, das sociedades - reparo que o espaço entre os degraus da adega precisa de uma pinturinha. E há um balde de tinta branca no banco de trás do carro, prontinho para me lavar a alma.
Paco de Lucia dizia que a infância não era só o início, mas também o lugar para onde se voltava. Devia ter razão porque sempre que regresso àquela casa, deixo o telemóvel no 1º andar e me enfio entre as oliveiras, poderia jurar que vejo o meu avô, enfundado naquele casaco quentinho que ainda não consegui deitar fora, a passar revista às árvores com o mesmo jeito com que passou revista às tropas durante meia vida. E oiço o meu tio, com a sua voz grave, quase institucional dizer-me, com todo o amor do mundo: “não há pôr do sol como o de Tomar”.
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