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Acordar



Deve ter-me acontecido dezenas de vezes. De vez em quando, alguém recebe uma mensagem minha às 5h da manhã e responde 4 horas depois, sempre com a mesma frase nada relacionada com a conversa que estávamos a ter: “O que é que fazias acordada àquela hora?!”. “Eu acordo a esta hora.” “O quê?!”


Ao fim de anos consecutivos de bullying e discriminação, achei que estava na altura de reivindicar a figura do madrugador e os direitos desta comunidade tão infrarepresentada na nossa sociedade. Uma que caminha solitária e de olhinhos meio estremunhados por este mundo de noctívagos orgulhosos desse estatuto. Porque ficar a fazer zapping até às 2h da manhã pelo simples prazer de levar o polegar ao ginásio é perfeitamente aceitável. Mas acordar 1 horita antes do nascer do sol é que é motivo de internamento psiquiátrico.


Começou na faculdade, quando a bibliografia tinha 2800 páginas mas o dia, apenas 24h. Passei de acordar às 6h - por obrigação, vicissitudes de quem morava em Sintra quando as aulas em Lisboa começavam às 8h - e aquela hora extra parecia salvar-me a vida, fosse por efeito placebo ou não. Mas tinha outra vantagem bem mais determinante. Rebeldia pura. Acordava às 5h porque queria, não porque o meu dia me obrigava. Uma hora extra permitia um tempo de intervalo, de suspensão anímica entre o acordar e o frenesim, a confusão do resto do dia. Quando as coisas acalmaram, mantive o hábito e investi ainda melhor o meu tempo. Atualmente é assim: esta manhã foi Oscar Wilde, foi Galdós, foi Zafón. Muitas vezes é Insuficiência Cardíaca, são emails chatos.. pedaços de vida que até gostaríamos de contornar. Mas mais do que nunca, 60 minutos do meu dia são mais meus que todos os outros e a minha cabeça corre livre e arejada enquanto o mundo dorme, quentinho e aconchegado lá fora. Claro. Está toda a gente exausta de tanto mudar de canal.


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